Blog Preparando-se
para o ENEM e/ou vestibulares, de autoria de Álaze Gabriel.
Autoria:
Alice Casimiro Lopes; Doutora em Educação pela
Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS);
Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação - PROPED - da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Silvia Braña López; Doutoranda no Instituto Fernandes
Figueira da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ).
RESUMO
Este artigo articula os efeitos da globalização com
as políticas de currículo e de avaliação. Defendemos, com base em Stephen Ball,
a compreensão das políticas de currículo como produção de sentidos e
significados para as decisões curriculares em um ciclo contínuo de produção de
políticas. Entendemos que uma das dimensões dessas políticas de currículo é a
produção de uma cultura da performatividade, expressa, entre outras ações, pelo
Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Pela investigação de documentos
relativos ao ENEM, identificamos que o foco desse exame é a formação do
indivíduo onicompetente para a eficiência social do sistema, porém,
diferentemente de outras épocas, centrado na autorregulação de suas
performances. Além disso, consideramos que a cultura da performatividade
influencia dimensões locais da avaliação, com diferentes extensões e modos de
avaliar, não necessariamente associados às mesmas finalidades dos exames
centralizados.
Palavras-chave: Avaliação; ENEM; Performatividade; Política de
Currículo.
INTRODUÇÃO
As mudanças no paradigma educacional produzidas nas
últimas décadas têm sido, de forma geral, associadas aos efeitos da
globalização. Um desses efeitos pode ser identificado na capilarização da
cultura da performatividade nas políticas de currículo. A compreensão restrita
do currículo como conteúdos a serem validados por sistemas de avaliação
centralizados nos resultados e os consequentes rankings de escolas e de
alunos são apenas algumas das evidências públicas dos discursos produzidos por
essa cultura.
Na medida em que defendemos a compreensão das
políticas de currículo como produção de sentidos e significados para as
decisões curriculares em múltiplos contextos, de maneira a constituir um ciclo
contínuo de produção de políticas (BALL, 1994), não trabalhamos com o
entendimento de que essa cultura da performatividade seja um discurso produzido
exclusivamente pelo Estado ou pelas agências governamentais. Uma característica
importante da abordagem do ciclo de políticas é sua crítica a essa centralidade
do Estado (LOPES, 2006; MAINARDES, 2007), passando pelo entendimento de que
toda política expressa uma negociação de sentidos curriculares ambivalentes.
Buscamos, assim, nos diferenciar de perspectivas que analisam exames
centralizados nesse enfoque (ZANCHET, 2002), por entendermos que, além dessas
influências, reinterpretações globais e locais se inserem nos discursos
políticos de currículo. Por essas reinterpretações, o discurso se torna muito
mais matizado e capaz de produzir efeitos variados.
É nessa perspectiva que apresentamos a análise de
documentos relativos ao Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), investigando os
princípios que apontam para a construção desse discurso favorável à cultura da
performatividade. Defendemos que o foco desse exame é a formação do indivíduo
onicompetente para a eficiência social do sistema de ensino e,
consequentemente, do sistema social. Salientamos, porém, que, diferentemente de
outras épocas, ele é centrado na autorregulação das performances do indivíduo.
Defendemos, ainda, que essa autorregulação proposta produz efeitos diferentes,
com finalidades distintas, em múltiplos contextos.
Ao considerarmos que o ENEM se insere no conjunto
de ações que expressam e constituem uma cultura da performatividade nas
políticas de currículo, não pretendemos identificá-lo como a expressão máxima
ou exclusiva dessa cultura, mas como exemplo de reinterpretação local, com
efeitos particulares, sintonizada com essa cultura global mais ampla. Tampouco
consideramos que as conclusões aqui estabelecidas para o Enem podem ser
transpostas para outros discursos associados à defesa de uma cultura da
performatividade, uma vez que não se trata de uma homogeneidade de sentidos que
se impõem indistintamente, independentemente das lutas políticas locais e das
finalidades postas em jogo. Mas ainda assim consideramos que esta análise
particular pode contribuir para outras interpretações de discursos correlatos,
não apenas marcando possíveis aproximações, mas distanciamentos significativos.
Neste artigo, de forma a desenvolver os argumentos
em defesa de nossas conclusões de análise, primeiramente esboçamos, com base em
Friederich Jameson e Bob Lingard, o cenário constituído a partir do fenômeno da
globalização. Para tal, focalizamos aspectos relacionados às mudanças no mundo
do trabalho e sua relação com as políticas educacionais globais. Seguimos com a
discussão proposta por Stuart Hall a respeito da centralidade adquirida pela
cultura na atualidade e o uso desta como forma de regulação social,
associando-a às discussões da performatividade, com Stephen Ball e Michel
Foucault. Apresentamos, por fim, pela análise dos documentos, o discurso que
toma por base a performatividade como forma de pensar globalmente o indivíduo
onicompetente, bem como sua influência em dimensões locais das avaliações, com
diferentes extensões e modos de avaliar.
O CENÁRIO DAS POLÍTICAS: O MUNDO GLOBALIZADO
A complexidade do processo de globalização reside
no fato de que não introduz somente mudanças quantitativas na produção e no
trabalho, mas também mudanças qualitativas. Jameson (2001) nos convida a
deslocar o foco de discussão em torno da globalização da definição teórica de
um conceito para a análise dos efeitos da globalização. Propõe, então, cinco
níveis distintos da globalização: o tecnológico, o político, o cultural, o
econômico e o social, "exatamente nessa ordem" (p. 17). O nível
tecnológico refere-se a uma nova tecnologia que não se restringe somente ao
campo das comunicações, mas também ao da produção e da comercialização de
produtos (circulação de mercadorias e serviços). Quanto ao efeito político, o
foco está na questão da nova configuração dos Estados-nação, com fronteiras não
tão definidas. Em relação à cultura, Jameson considera relevante refletir sobre
a tensão entre as culturas locais e os esforços de estandardização delas por
uma cultura que se mundializa, partindo desses efeitos culturais os efeitos
econômicos da globalização. Jameson identifica ainda a estetização das
mercadorias como o fenômeno cultural que atravessa o atual processo de
produção, capazes de tornar cada vez mais fluidos os limites entre cultura e
economia. Concordamos com o autor que tal imbricação entre o cultural e o
econômico traz profundas consequências para a esfera social, já que reconfigura
toda uma agenda social que engendra as formas de ação política e torna também
imbricadas a cultura e a política.
As consequências desse processo para a educação,
por sua vez, são mais profundas do que a simples introdução de novas tecnologias
e o fortalecimento de determinadas disciplinas em detrimento de outras, tais
como: a inserção de novas linguagens da informática no currículo, o
fortalecimento do ensino de ciências e matemática, a valorização da sociologia
como suporte ao entendimento das relações transculturais, o domínio da
linguagem, tanto oral quanto escrita, revelando a importância da comunicação em
seus diversos sentidos. Expressando mudanças nas formas de trabalho no modo de
produção capitalista, a centralidade da cultura e o reordenamento
geopolítico-econômico em curso, surgem novas exigências em relação às
competências e habilidades entendidas como necessárias ao trabalhador capaz de
se inserir no mundo em mudança cada vez mais acelerada.
O projeto de formação desse trabalhador, não mais
visto como qualificado para uma função, mas como mobilizador de competências -
algumas delas muito especializadas, vinculadas a determinadas funções
transitórias -, facilita a articulação entre demandas construtivistas e
demandas instrumentais. As demandas construtivistas, voltadas para competências
complexas, centradas no processo de aprendizagem do aluno e com foco na
construção do conhecimento, tornam-se agora compatíveis com as demandas
instrumentais, voltadas para competências centradas no desempenho e para o
controle do processo de ensino-aprendizagem, visando à eficiência da instrução
(LOPES, 2008). Tal articulação também produz novas exigências para o professor
capaz de garantir a formação de tal trabalhador. Como discute Dias (2006), a responsabilização
individual do professor pelo desempenho do aluno e da escola, o foco na
competitividade entre professores e a constituição de um perfil profissional
ancorado nessas performances marcam a constituição da cultura da
performatividade na formação de professores.
Em relação à atuação dos Estados-nação nesse
cenário mundial, Ball (2004a, p. 1106) discute o surgimento de um acordo
político do pós-Estado da Providência, no qual observa "mudanças nos
papéis do Estado, do capital, das instituições do setor público e dos cidadãos
e nas suas relações entre si". Esse autor inicialmente aponta para a
modificação da qualidade das atividades do setor público. O Estado passa do
estatuto de provedor para o de regulador, atuando como auditor na avaliação dos
resultados alcançados pelos mercados internos. Uma segunda mudança por ele
sinalizada refere-se à obtenção de lucro por meio de atividades de natureza
social, quando as empresas rompem com as regulações do não-mercado e nele
inserem seus princípios. A terceira mudança enfatizada por Ball diz respeito às
instituições do setor público que são levadas a se inserirem em uma nova
cultura de performances (desempenhos) competitivas, a partir da
descentralização e dos incentivos a um novo perfil institucional. Por último,
há a mudança que diz respeito aos cidadãos, os quais passam da posição de
dependência em relação ao Estado do Bem-Estar Social para o papel de
consumidores ativos. Associado a essas mudanças, não podemos deixar de
considerar o fenômeno das trocas aceleradas de informação e de bens simbólicos,
com grande intensificação dos intercâmbios culturais. A aceleração das
desterritorializações e reterritorializações dos processos simbólicos torna os
signos de identificação cultural, cada vez mais, não-fixos. Ainda segundo o
autor (BALL, 1997), passamos a conviver com uma associação entre as velhas
formas de gerencialismo, centradas no controle direto, mediante a ameaça de
punições, e o novo gerencialismo, em que prevalecem processos de
autorregulação: as pessoas são motivadas a assumir performances de qualidade e
excelência, supostamente sem os mecanismos diretos de repressão anteriormente
utilizados.
Esses intercâmbios culturais trazem outros desafios
para o campo da pesquisa educacional, uma vez que fica mais evidente que a
produção de políticas não é emanada exclusivamente dos centros globais de poder
político, tais como organismos de representação internacional das nações,
órgãos de financiamento de programas de desenvolvimento na esfera mundial,
Estados-nação hegemônicos que "exportam" e disseminam diagnósticos e
"soluções" políticas educacionais. Há que se considerar a tensão
global-local como capaz de produzir novas configurações em um vigoroso processo
de negociação e de recontextualização, ao que Appadurai (apud LINGARD,
2004) denomina "globalização vernacular".
Se, por um lado, podemos identificar a convergência
de políticas no contexto de influência, tais como a formação por competências,
a formação para o atendimento de demandas mercadológicas, a estruturação de
processos de avaliação continuados, por outro, tal convergência não garante
homogeneidade quando situada nos contextos de produção e de prática (BALL,1998;
2001). Tanto pela mediação dos Estados-nação e dos sujeitos e instituições
atuantes em sua esfera, que articulam a produção de orientações oficiais,
quanto pelas releituras no espaço escolar, na conversão das práticas globais em
locais, os textos circulantes são reinterpretados, resultando na produção de
discursos híbridos. Tal hibridismo é decorrente de um processo de
recontextualização no qual discursos, ou mesmo fragmentos deles, são associados
a discursos locais. Instaura-se uma negociação assimétrica entre esses
discursos, incluindo ideias, documentos, experiências, práticas e pesquisas, constituídos
localmente, que resultam em uma recriação híbrida no contexto da prática e no
contexto de produção das orientações oficiais.
Nesse trânsito de sentidos e significados,
constantemente recontextualizados nos múltiplos contextos, é que se dá a disseminação
de uma política educacional global identificada como circulante nos países
ocidentais pós-industriais. Essa política também é aqui considerada como
formada por princípios locais que se globalizaram. Segundo Carter e O'Neil (apud
BALL, 1998, p. 126), são cinco elementos principais que circulam com tais
políticas: a) estreitamento da relação entre escolarização, produtividade e
comercialização; b) busca da melhoria dos resultados escolares em termos de
habilidades e competências exigidas pelo mercado de trabalho; c)
estabelecimento de controle sobre os conteúdos curriculares e sua avaliação no
âmbito das escolas, com foco no desempenho de professores e estudantes; d)
busca da minimização dos custos educacionais para o governo; e, finalmente, e)
incremento da participação e do envolvimento da comunidade, sobretudo por meio
da participação dos responsáveis pelos estudantes e das exigências
mercadológicas nos processos decisórios da instituição escolar.
Tais elementos engendram políticas de currículo que
tentam instaurar processos de regulação por meio do que vem sendo denominado
cultura da performatividade, a qual passamos a analisar.
A CULTURA DA PERFORMATIVIDADE COMO PROJETO DE
REGULAÇÃO DA EDUCAÇÃO
Tomando de empréstimo o conceito de cultura de Hall
(1997) como conjunto de sistemas ou códigos de significados que dão sentido às
nossas ações, podemos identificar as práticas sociais como práticas de
significação e, como tais, não só definidoras dos significados dos objetos, mas
também de sistemas de codificação, ordenação e regulação de modos de agir em
sociedade. Nessa perspectiva, a cultura é definidora também das identidades
sociais e da constituição dos sujeitos, na medida em que tais identidades e
subjetividades derivam de processos discursivos, os quais possibilitam nos
situarmos e nos movimentarmos na interioridade das definições fornecidas pelos
discursos culturais. Com isso, ainda segundo Hall (1997, p. 32), "todas
as práticas sociais, na medida em que sejam relevantes para o significado ou
requeiram significado para funcionarem, têm uma dimensão 'cultural'".
A essa perspectiva associamos a discussão de
Foucault (1989) quando afirma que cada sociedade possui seu regime de verdade,
a partir do qual produz efeitos coercitivos e regulamentados de poder. Cada
sociedade estabelece uma "economia política" de verdade/poder pela
qual certos tipos de discurso são acolhidos como verdadeiros e outros, não; na
qual certos mecanismos e instâncias permitem distinguir os enunciados
verdadeiros dos falsos, sancionando uns e outros; pela qual se constituem
certas técnicas e procedimentos que são valorizados; na qual se define o
estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro e
válido. O poder e seu regime de verdade são disciplinares, atravessando toda a
trama social. O poder "não destrói o indivíduo; ao contrário, ele o
fabrica. O indivíduo não é o outro do poder, realidade exterior, que é por ele
anulado; é um de seus mais importantes efeitos" (MACHADO, 1986, p. XX).
Pela sintonia com esses enfoques, acreditamos na
relevância das análises em torno dos sentidos e significados circulantes nas
políticas de currículo. A partir de sua investigação, encontramos determinados
traços globais e locais nas releituras das definições oficiais, bem como nos
efeitos dessas políticas na sociedade por intermédio da escolha de certas
finalidades em detrimento de outras. Tais políticas deslizam ao longo de todo
seu processo de constituição, por intermédio de ordenações discursivas e
mecanismos de regulação diversos.
Segundo Hall (1997, p. 36), "o movimento em
direção às 'forças libertadoras do livre mercado' e a estratégia de
'privatização' tornaram-se a força motora de estratégias econômicas e culturais
tanto nacionais quanto internacionais". As políticas reformistas adotadas
nas últimas décadas por diversos governos, fomentadas por organizações
supranacionais financiadoras de projetos, tais como o Banco Mundial e o Fundo
Monetário Internacional, por meio de seus programas de ajustes estruturais,
revelam a adoção de políticas marcadamente privatizantes, de redução do
financiamento estatal e a adoção da cultura do livre mercado como forma de
regulação. Mas em torno dessas ações que envolvem interesses materiais
bem-delineados, há a circulação de discursos globais e locais que buscam
construir a legitimação de tais orientações. Comunidades epistêmicas globais e
locais (ANTONIADES, 2003) são formadas difundindo e reinterpretando tais
orientações.
Um exemplo desses discursos pode ser identificado
no Relatório Delors (DELORS, 2001), documento produzido pela Unesco e que se
propõe "afirmar a sua fé no papel essencial da educação no desenvolvimento
contínuo, tanto das pessoas como das sociedades"(p. 11).Tal documento
compreende a educação como uma via capaz de conduzir os países ao
desenvolvimento humano, social, nacional e, por fim, global. Um dos pilares da
reforma educacional, proposta nesse relatório, é a valorização de um necessário
e contínuo processo de aprender a aprender, agregando ao conceito de
educação um caráter contínuo e permanente - a educação ao longo de toda a vida,
espelhando traços de uma regularidade global nos sentidos atribuídos às
finalidades da educação. Tais sentidos capilarizam-se e podem ser
identificados, recontextualizados, nos projetos de políticas curriculares
locais.
Em torno da ideia da eficiência e da maximização de
resultados que a radicalidade do processo contínuo do aprender resulta, podemos
assinalar a adoção de soluções de mercado visando a favorecer a emersão e o
fortalecimento da cultura centrada na performatividade. O extravasamento de
determinado ideário do campo da economia para outras esferas da vida social
resulta, em especial no que se refere à educação, na mercantilização e na
objetivação do processo de ensinar-aprender e favorece sua associação à
avaliação como meio de aferir o sucesso da aprendizagem. Essa tríade
aprender-ensinar-avaliar apresenta cada vez mais uma relação de
interdependência. Segundo Boyle (apud BALL, 2004a, p. 1116), "o
ensino e a aprendizagem estão sendo reduzidos a processos de produção e de
fornecimento, que devem cumprir os objetivos de mercado de transferência
eficiente e de controle de qualidade".
A educação passa a ser pensada como forma de
produção e serviço, sob a regência da lógica do mercado e pelo afastamento
gradual do Estado em seu financiamento, mas não em sua regulação. Assim, em
nome desse processo de objetivação, as especificidades dos processos
educacionais que, até então, pressupunham uma necessária "interação
humana", tendem a ser prescindidas. Busca-se reduzir e subordinar a
prática do ensino-aprendizagem à exterioridade, a partir da adoção de regras e
da utilização de um suporte material (livros, mídia institucional, parâmetros)
que se quer prescritivo, estandardizado e, por isso, mesmo passível de ser
classificado, mensurado e comparado, sempre com a finalidade de se atingir
metas. A mitificação política acerca da eficiência do setor privado e suas
inovadoras formas de gestão propiciam a convergência do setor público em
direção e de acordo com os pressupostos mercadológicas privados, tanto em seus
aspectos materiais quanto nos simbólicos. Com isso, constitui-se a preocupação
mais recentemente observável dentro do setor público com a gestão "das
aparências, marketing e promoção" (BALL, 2004a, p. 1117).
Um dos exemplos dessa política de regulação é o
surgimento de uma cultura da performatividade. Ball (2003, p. 216) define a
performatividade como "uma tecnologia, uma cultura e um modo de regulação
que emprega julgamentos, comparações e termina se revelando como meio de
controle, de desgaste e de mudança". Em referência ao trabalho de Lyotard,
Ball (2004b, p. 142) observa dois fortes componentes que têm constituído o novo
discurso de poder nas sociedades pós-industriais, quais sejam, a responsabilização
(accountability) e a competição, a partir dos quais todo um processo de
legitimação de novas identidades sociais passa a se pautar. Nesse sentido, a
educação adquire ainda maior destaque, já que, por intermédio dela, busca-se,
de modo mais efetivo, a transmissão da cultura da performatividade para a
constituição de sujeitos mais produtivos, eficientes, polivalentes, pró-ativos,
assertivos, disponíveis à compreensão de outras culturas. Instaura-se a
incessante busca pelo que denominamos sujeito onicompetente, aquele que está em
perene prontidão para a demonstração de seus conhecimentos e desempenhos, em
constante e permanente processo de avaliação, no qual "o funcionamento do
poder é garantido pelo controle constante da performatividade"(LOPES, 2004,
p. 63). Para isso, as organizações lançam mão de estratégias de gestão e
governança em nome de um plano de cumprimento de metas, a partir da maximização
do desempenho de seus quadros e do enxugamento de custos operacionais, mesmo
que em rota de colisão com questões de ordem ética, profissional, humana.
Trata-se de um esforço de naturalização que a cultura da performatividade tem
possibilitado, no sentido de constituir dada normatividade, o disciplinamento
por intermédio de novos arranjos discursivos e de regulação social.
Há que se destacar que, em Lyotard (1986), a
cultura da performatividade não é assumida como necessariamante negativa, mas
como um modo diverso de legitimação do conhecimento na pós-modernidade. Para
Lyotard, a ciência pós-moderna é aquela que passa a se validar pela
performance, um processo de legitimação no qual o poder substitui os critérios
de justiça, beleza ou verdade. Mas tal substituição não é uma mudança por
julgamento de valor, mas em função do fim das metanarrativas de justificativa
da ciência, sejam elas a formação do espírito ou a ideia de verdade legitimada
pela prova empírica, cara ao realismo. Nesse caso, a legitimação pelo
desempenho advém dos resultados que esse desempenho pode trazer para a solução
de problemas, a melhoria da qualidade de vida e/ou a capacidade de produzir
mais recursos econômicos.
Ainda assim, como salienta esse autor, a lógica do
desempenho pode se tornar apenas uma forma de consolidação do sistema, de modo
determinista, pois está prevista nessa lógica a concepção de que, a partir de
determinados insumos, temos, por consequência, determinados resultados. Admitir
que essa lógica existe e que com ela a ciência trabalha não deve significar a
desconsideração de outras lógicas. É possível, como faz Lyotard, defender que a
ciência também trabalha com a paralogia, forma que visa ao pluralismo cada vez
maior no interior do sistema. Nesse processo, em vez de apenas se trabalhar
para que melhores desempenhos sejam obtidos, seguindo as regras do jogo da
ciência, busca-se romper com essas regras. Isso é possível ser feito com a
identificação de paradoxos e a criação de novas regras.
A cultura da performatividade, imbuída do projeto
de manutenção do sistema, entretanto, ainda que não seja a única, vem sendo
disseminada privilegiadamente pela educação. Um dos exemplos que no Brasil
expressa essa disseminação é o ENEM, que passamos a analisar.
AVALIAÇÃO E PERFORMATIVIDADE NAS POLÍTICAS DE
CURRÍCULO: O CASO DO ENEM
Ball (2001) analisa como essa nova economia moral,
mais do que um sistema de vigilância, constrói um espetáculo que define um
fluxo de performatividades contínuas e importantes. Os desempenhos dos sujeitos
individuais e/ou das organizações servem como medida da produtividade e
exposição pública da "qualidade". Conferir visibilidade ao
conhecimento e, portanto, garantir sua medida, permanece sendo a lógica que
configura os processos de avaliação, tal como em processos instrumentais
instituídos em outras épocas no meio educacional (DÍAZ BARRIGA, 1992).
Tal foco na medida de desempenho pode ser percebido
na avaliação das competências e habilidades. O ENEM assume, desde sua criação,
a intenção de:
(...) avaliar o desempenho do aluno ao término da
escolaridade básica, para aferir o desenvolvimento de competências fundamentais
ao exercício pleno da cidadania (Documento Básico, p. 1). Para tal, assume a
concepção de competência como modalidades estruturais da inteligência, ou
melhor, ações e operações que utilizamos para estabelecer relações com e
entre objetos, situações, fenômenos e pessoas que desejamos conhecer. As habilidades
decorrem das competências adquiridas e referem-se ao plano imediato do
"saber fazer". Por meio das ações e operações, as habilidades
aperfeiçoam-se e articulam-se, possibilitando nova reorganização das
competências (aferir o desenvolvimento de competências fundamentais ao
exercício pleno da cidadania) (Documento Básico, p. 5, grifos nossos).
Como já foi discutido em outros trabalhos (LOPES, 2001;
MACEDO, 2002), as competências se inserem em uma perspectiva curricular
instrumental que tende a limitar o conhecimento ao saber-fazer, ao desempenho.
Mesmo quando associadas às estruturas da inteligência, como no Enem, é por meio
das habilidades e das performances que elas são expressas e medidas. Com isso,
sua dimensão cognitiva é esvaziada de sentido, reduzindo-se a uma função de
valor de troca no mercado social: afirma-se a positividade do conhecimento caso
ele se expresse em um saber-fazer passível de ser trocado por vantagens
sociais. Com isso, nosso questionamento não se dirige à possibilidade de que,
pelo currículo, haja formação de competências e habilidades ou de que o
conhecimento também seja a base de performances vinculadas a dimensões pragmáticas.
A problemática se insere na redução do currículo e do conhecimento a essas
dimensões. Tal processo pode se desenvolver quando a organização curricular é
instituída por meio de competências e habilidades.
Uma das reinterpretações hibridizadas das competências
com orientações mais críticas é a perspectiva de conhecimento situado,
contextualizado, buscando sintonia com dimensões cotidianas. No caráter híbrido
de tal contextualização, no entanto, também prevalecem concepções instrumentais
(LOPES, 2002a), pois tende a ser valorizado o conhecimento situado em um
contexto de aplicação, "sendo em parte um produto da atividade, do
contexto e da cultura nas quais é desenvolvido e usado" (Informativo do
Enem - Brasil, 2005a). Na medida em que as competências vão além das dimensões
cognitivas, por vezes tornando nebulosas suas relações com o conhecimento, elas
são igualmente pensadas no seu vínculo com os valores e as disposições do
sujeito diante de situações-problema.
Busca-se, dessa maneira, verificar como o
conhecimento assim construído pode ser efetivado pelo participante por
meio da demonstração de sua autonomia de julgamento e de ação, de atitudes,
valores e procedimentos diante de situações-problema que se aproximem o
máximo possível das condições reais de convívio social e de trabalho
individual e coletivo. (Documento Básico, p. 5, grifos nossos)
É dessa forma que a concepção de conhecimento
mostra-se restrita ao utilizável, ao que é situado em determinados contextos.
Como discute Lyotard (1986), "o conhecimento não é mais legitimado porque
é verdadeiro, porque atende princípios como ser bom, justo ou belo, mas porque
é bem-sucedido, tem menor custo que outra opção". O conhecimento passa a
ser encarado socialmente como expressão do resultado dos exames, uma
identificação não apenas construída pelos elaboradores desses exames, mas pelos
que analisam seus resultados e seus efeitos sociais. É por meio da
performatividade e da responsabilidade (accountability) que serviços
sociais como a educação são padronizados, calculados, qualificados e
comparados, em uma dinâmica na qual os conhecimentos legitimados dos estudantes
passam a ser vistos como idênticos aos resultados dos testes que o representam.
A despeito de o presidente do Instituto Nacional de
Pesquisas Educacionais (Inep), instituto formulador e implementador do ENEM,
afirmar que a função do exame é diagnóstica para as políticas públicas e que
não tem por objetivo fazer ranking de qualquer tipo de avaliação - até
por saber que não só a escola, mas também a trajetória do aluno e o perfil
sociocultural dele são muito importantes para os resultados obtidos (FERNANDES,
2007) -, a divulgação dos resultados de todas as escolas, por município e por
ordem alfabética, permite a constituição de rankings divulgados pela
mídia. O interesse por tais rankings gera as apressadas conclusões
extraídas desses resultados, vinculando de forma imediata e simplificadora as
notas dos alunos com a suposta qualidade das escolas. Mas, sobretudo, expressa
o quanto a cultura da performatividade encontra sintonia com múltiplos
interesses sociais, além da esfera do Estado. Tanto que, a despeito do
interesse pelo tema, a discussão sobre as provas do ENEM só encontra espaço na
mídia visando a ações preparatórias para os exames. É como se em uma avaliação
não coubesse questionar o instrumento que gera o resultado obtido.
É importante ressaltar que a concepção de
conhecimento expressa do Documento Básico do ENEM visa à integração de saberes,
mostrando-se sintonizada com dimensões críticas ao currículo disciplinar e,
dessa forma, construindo seu processo de legitimação junto ao meio educacional
mais amplo. Como afirmado na p. 4:
(...) a concepção de conhecimento subjacente a essa
matriz pressupõe colaboração, complementaridade e integração entre os conteúdos
das diversas áreas do conhecimento presentes nas propostas curriculares das
escolas brasileiras de ensino fundamental e médio e considera que conhecer é
construir e reconstruir significados continuamente.
Na medida em que a competência se expressa em um
saber-fazer, a integração é desenvolvida pela articulação dos diferentes
saberes necessários a esse saber-fazer, assumindo, com isso, uma perspectiva
instrumental, distante de outras perspectivas de integração que têm por
referência os saberes dos alunos ou os saberes cotidianos (LOPES, 2008). Ou
ainda, assumindo que os saberes cotidianos a serem legitimados são aqueles que
permitem a inserção do indivíduo na nova lógica do mundo produtivo.
Assim, o foco nas competências e habilidades é
apresentado como uma organização curricular e uma forma de avaliação
obrigatórias, na medida em que são entendidas como capazes de atender às
mudanças no mundo globalizado.
Esta rapidez com que as mudanças sociais se
processam e alteram nossa vida cotidiana impõe um padrão mais elevado
para a escolaridade básica, e o projeto pedagógico da escola deve objetivar
o desenvolvimento de competências com as quais os alunos possam assimilar
informações e utilizá-las em contextos adequados, interpretando códigos
e linguagens e servindo-se dos conhecimentos adquiridos para a tomada de
decisões autônomas e socialmente relevantes. (Documento Básico, p. 1, grifos
nossos).
A suposta inexorabilidade do novo cenário
naturaliza as novas formas de regulação, tornando-as mais do que obrigatórias -
desejáveis -, pois buscam viabilizar a possibilidade do sucesso.
As marcas que situam o ENEM nas políticas que
configuram a performatividade também podem ser identificadas nos objetivos
explícitos do exame (Documento Básico, p. 2). Não se trata apenas de uma
avaliação do sistema de educação básica, como prevê um dos objetivos do
documento, mas é esperado que o exame sirva como referência à autoavaliação do
indivíduo, "com vistas às suas escolhas futuras, tanto em relação ao
mercado de trabalho quanto em relação à continuidade de estudos", bem como
possibilite uma alternativa ou um complemento aos processos de seleção nos
diferentes setores do mercado de trabalho e nos exames de acesso aos cursos
profissionalizantes pós-médios e ao ensino superior. Tal perspectiva é
corroborada pelas cartilhas do Exame (BRASIL, 2006ª; 2008) e por pesquisas
desenvolvidas com candidatos do Enem (PINTO; LETICHEVSKY; GOMES, 2002)
Nesse sentido, diferencia-se de processos
instrumentais de avaliação instituídos em épocas passadas, nos quais se visava
à eficiência do sistema de ensino, tendo por base a funcionalidade do sistema
social em uma base coletiva de controle. Em tempos de valorização da
performatividade, o foco é o indivíduo e sua possibilidade de se autorregular
por meio do autoconhecimento. Com isso, é almejada a identificação entre
avaliação externa e autoavaliação, constitutivos não apenas de uma preparação
para o exame, mas para a "vida". Os slogans "O ENEM prepara você
para as provas da vida" (BRASIL, 2005b) e "Venha participar desta
revolução" (BRASIL, 2008) buscam estabelecer essa relação com a mudança e
o projeto de vida, para além de um simples processo de examinar saberes.
Com a dissolução aparente da vigilância externa -
não há a obrigação de ser aprovado-, configura-se a internalização da avaliação
e do exame de seu autoconhecimento. Como afirmado no Informativo do ENEM
(BRASIL, 2005a, p. 18), referindo-se aos professores que prestam esse exame,
"o Enem faz uma inversão necessária na pirâmide das políticas
educacionais. Ao invés de agir no sistema, para que tenha resultados no
indivíduo, trabalha no indivíduo e gera conseqüências no sistema". É a
autorregulação das performances do indivíduo que são entendidas como base de
manutenção do funcionamento do sistema.
Ainda que localizado ao final do ensino médio, o
Enem tende a vincular o conhecimento, expresso nas competências e habilidades,
ao que é entendido como necessário ao indivíduo em toda sua vida. É
simultaneamente afirmado que o exame é voluntário, um direito do aluno, mas
também uma necessidade da vida contemporânea. No slogan final do Informativo do
ENEM (BRASIL, 2005a, p. 32) - "A vida é cheia de opções. Esteja pronto
para escolher as melhores" -, a vinculação com a qualidade do conhecimento
necessário ao mundo e ao trabalho que se transformam tão rapidamente, a
instauração da incerteza quanto ao futuro e a instabilidade da avaliação
constante configuram o quadro que permite à cultura da performatividade se
inserir nas políticas de currículo.
Cabe destacar, ainda, que, enquanto os exames
vestibulares são vistos como norteadores de conteúdos utilizados para
determinar a entrada nos níveis superiores e, dessa forma, controlar os
currículos do nível médio, o ENEM colocou-se, inicialmente, com uma tarefa mais
profunda: estabelecer as performances exigidas para a vida e para o trabalho,
dimensões que se associam e se reforçam na forma como tendem a ser entendidas
na cultura global. Com isso, a perspectiva de controle centralizado do
currículo do nível médio também se acentua (MILDNER; SILVA, 2002a), porém não
mais centralizado nos conteúdos, mas nas competências e habilidades. A relativa
ausência da validade de conteúdo em provas do Enem já foi evidenciada por
trabalhos que analisam as questões de Química e de Língua Portuguesa (MILDNER;
SILVA, 2002a; 2002b), e também pode ser constatada pela compreensão geral que
os alunos de nível médio têm em relação às provas.
Na medida em que o exame se tornou também a
possibilidade de acesso ao Programa Universidade para Todos (ProUni), a esses
objetivos foi agregado, mais acentuadamente2,
o de acesso ao nível superior. Nesse caso, é possível perceber, nos documentos
de divulgação do exame, a superposição desse discurso regulador das
competências e habilidades com o discurso que busca ampliar as possibilidades
de acesso ao ensino superior. A despeito das críticas ao ProUni, em virtude do
direcionamento de verbas para o sistema privado de ensino, a ele se associa uma
dimensão democrática de tentativa de diminuição da desigualdade de acesso no
ensino superior. Nesse caso, os efeitos de primeira ordem (BALL, 1994),
vinculados à garantia da instrução, mais marcantes nas primeiras versões do
Enem, são articulados aos efeitos de segunda ordem descritos pelo mesmo autor,
que tentam obter resultados de ampliação da justiça social.
Dessa forma, o ENEM, como um sistema avaliativo que
condensa os princípios da Reforma Educacional do Ensino Médio brasileiro, se
constitui como um dispositivo que entrelaça e interpenetra o processo de
ensino-aprendizagem em múltiplos níveis, já que, a partir dele, são engendrados
tanto resultados globais (relativos às redes de ensino), quanto locais
(referentes às unidades locais) e individuais (relativos ao aluno). Igualmente,
o ENEM participa do fortalecimento e da circulação dos princípios da reforma,
pois, em seu entrelaçamento e em seu processo de negociação com os múltiplos contextos
com os quais se relaciona, produz efeitos mais ou menos convergentes de adesão
a seus princípios. Pelos efeitos que produz nas políticas de currículo, os
discursos associados a esse exame constituem um contexto de influência para
outras ações curriculares e também para outros sistemas de avaliação.
Localmente, o vestibular da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (UERJ) é um exemplo dessa influência (LÓPEZ, 2007). O
processo de construção do novo modelo de Vestibular da UERJ, em 2000, partiu da
justificativa de adequação de seu processo avaliativo às novas prerrogativas
legais em curso à época, quais sejam, a nova LDB, as diretrizes e aos
parâmetros curriculares para o ensino médio. Cumpre destacar, no entanto, que
tal modelo emerge de um processo anterior3,
mais amplo e complexo, de reestruturação do projeto universitário da
instituição, que visava a criar condições para a produção de conhecimento
científico e incremento à pesquisa na universidade, rompendo com sua tradição
vocacional de formação profissional, até então, instituída desde sua fundação.
Vinculou-se, assim, a um projeto que contribuiu não só para a modernização dessa
instituição de nível superior como para ampliar as possibilidades de cumprir
com finalidades sociais de pesquisa esperadas de uma universidade.
Os argumentos jurídico-normativos utilizados
contribuíram para o esmaecimento de resistências internas que poderiam
obstaculizar a institucionalização dessa nova agenda para a universidade.
Assim, princípios observados na Reforma Educacional brasileira, tais como a
integração curricular, a contextualização e a avaliação baseada na aferição de
competências e habilidades, foram apropriados no escopo desse novo modelo de
concurso vestibular. Na análise de López (2007), no entanto, com base na
perspectiva de Stephen Ball, os sentidos das políticas, quando em seu processo
de negociação entre os múltiplos contextos pelos quais transita, expressam os
acordos entre as lutas pelo poder de significação das políticas educacionais.
Isso resultou especificamente, no caso da UERJ, uma hibridização de sentidos
que amalgama princípios da reforma e da tradição disciplinar da universidade,
produzindo políticas curriculares para o ensino médio diferenciadas daquelas
intencionadas pela Reforma Educacional. Seus efeitos, portanto, não podem ser
traduzidos como mera extensão dos efeitos do Enem, ainda que neles se
baseassem.
CONCLUSÕES
Para concluir, é importante salientar o quanto a
constituição da cultura da performatividade de forma global não é um processo
que verticalmente se impõe a nós, como uma dimensão externa aos sujeitos, mas
sim uma rede de poderes nas quais nos constituímos. A existência dessa cultura
não é por nós entendida como uma produção exclusiva do contexto de influência
e/ou do contexto de produção de textos delineados por Ball, mas como dinâmicas
que se articulam em múltiplos contextos e que também têm sua produção engendrada
no contexto da prática. Assim, contam com a participação de múltiplos sujeitos
capazes de construir comunidades epistêmicas globais e locais em defesa das
avaliações centralizadas nos resultados e de sua associação com a qualidade da
educação. Não é incomum encontrarmos escolas que, em torno do Enem, vêm
construindo práticas que estimulam seus alunos aos estudos e buscam sua
valorização social e o desenvolvimento de sua autoestima.
Também é possível destacar, como procuramos
argumentar ao longo do texto, como a perspectiva instrumental predominante no
exame encontra-se hibridizada a outras tendências, que tanto podem assumir um
viés mais democrático - quando sinalizam a necessidade de diminuir a
desigualdade de acesso à universidade - quanto podem acentuar os efeitos
performáticos - constituindo rankings supostamente científicos de
escolas.
Nessa perspectiva, existem dimensões locais das
avaliações, diferentes extensões de seus efeitos a serem analisados, inclusive
considerando as diferentes leituras em contextos institucionais e disciplinares
diversos. Defendemos, portanto, ser necessário associar a essa análise a
investigação dos sentidos e significados produzidos nas políticas pelos exames
já realizados.
Mas já é possível perceber como o foco na formação
do indivíduo onicompetente para a eficiência social do sistema de ensino e do
sistema social, centrado na autorregulação de suas performances, tenta se
tornar uma meta a ser alcançada, na construção dessa cultura da
performatividade. Dessa forma, mais do que a eficiência social das perspectivas
instrumentais de outras épocas, com algum sentido voltado ao coletivo, busca-se
a eficiência do indivíduo autorregulado, supostamente capaz de vir a se
traduzir em uma eficiência do sistema.
Tal meta não se estabelece em todos os níveis da
mesma forma, tampouco é possível afirmar que ela se estabeleça de uma vez por
todas. Mas a existência de esforços nessa direção já é suficiente, a nosso ver,
para que busquemos estabelecer e reforçar ações no sentido de acentuar
políticas sintonizadas com o caráter diagnóstico das avaliações e com a
possibilidade de questionar o foco no desempenho quando ele só se mostra como
produtor de efeitos não-democráticos. Em outras palavras, torna-se fundamental
não restringir a avaliação e o currículo ao foco no desempenho. Diferentemente,
mostra-se importante tornar o foco no desempenho uma forma de evidência pública
vinculada à luta pela diminuição das desigualdades sociais.
Por fim, cabe destacar que tais questões nos
apontam não apenas para problematizarmos o projeto e os efeitos decorrentes de
uma cultura da performatividade no currículo, mas também para questionarmos
esses efeitos, atuarmos no sentido de reinterpretá-los e redirecioná-los, na
medida em que "em si mesmas as regras são vazias, violentas, não
finalizadas; elas são feitas para servir a isto ou àquilo; elas podem ser
burladas ao sabor da vontade de uns ou de outros"(FOUCAULT, 1989, p. 25).
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Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais ¾ INEP. Revista do
ENEM. 2007, p. 6-8.
NOTAS
1 Uma versão reduzida deste texto
foi apresentada no XIII Endipe, Recife, 2006, com o título "A
performatividade nas políticas de currículo: o caso do ENEM". Este
trabalho faz parte do grupo de pesquisa Currículo: sujeitos, conhecimento e
cultura (www.curriculo-uerj.pro.br) e contou com financiamento do
CNPq, da Faperj e da UERJ.
2 Antes do ProUni, o uso do ENEM
como forma de seleção aos cursos superiores era mais restrito, dependendo da
decisão de cada universidade.
3 A partir dos anos 1990, a UERJ
desenvolveu toda uma política de acelerar e aprofundar seu processo de produção
científica. Um dos marcos desse processo é o Programa Prociência, que visa a
conceder bolsa de dedicação exclusiva com base em uma avaliação por pares da
produção e da pesquisa dos professores.