Blog PREPARANDO-SE
PARA O ENEM E/OU VESTIBULARES, de autoria de Superdotado Álaze Gabriel.
Autoria 1:
Luis Fernando Cerri - Universidade Estadual de Ponta
Grossa. UEPG (PR)
RESUMO
Este texto constitui um apanhado sobre o contexto
em que os Parâmetros Curriculares Nacionais vêm a público, e procura traçar
paralelos entre alguns elementos desse contexto e o conteúdo que tais
documentos propõem, como também entre os problemas e as possibilidades por eles
trazidas ao trabalho do professor: recompor os conteúdos, contribuir para a
formação do aluno, prepará-lo para o Exame Nacional do Ensino Médio e para os concursos
vestibulares. O objetivo é demonstrar que o ENEM, entre outras práticas
avaliativas criadas no governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), constitui
um fator de organização do currículo do Ensino Médio, conjuntamente com (e por
vezes apesar deles) os documentos tradicionalmente reconhecidos como
currículos, e portanto constitui um fator importante da escolha e dosagem de
saberes históricos operados junto à faixa crescente da população brasileira que
conclui esse nível educacional.
INTRODUÇÃO
Muito se discute sobre os currículos de História
para a Escola Básica, e com justiça. Os currículos são elementos centrais na
atividade educativa e expressam significativamente as noções, concepções,
conceitos e preconceitos sobre a sociedade, a ciência, a educação e o ser
humano, no momento em que são elaborados. Os estudos nessa área, todavia, são
claros em apontar que a atividade educativa desenvolvida na sala de aula é uma
realidade que o currículo (entendido como a orientação da atividade dos professores
cristalizada num documento ou conjunto de documentos) influencia, mas não
governa. Entre o currículo prescrito e o aprendizado do aluno interpõem-se
fenômenos (como o currículo oculto e os condicionamentos específicos de cada
escola e de cada sala) que produzem o currículo realizado, distinto daquele se
prescreveu. Um dos fatores que condiciona a efetivação do currículo é a
avaliação externa à escola. Nesse sentido, é de longa data que os exames
vestibulares vêm se comportando como o principal organizador do currículo do
Ensino Médio, e nesse campo, aos poucos o Exame Nacional do Ensino Médio ENEM vem
ganhando um espaço expressivo.
O objetivo deste texto é desenvolver uma reflexão
despretensiosa em torno das políticas públicas para o Ensino Médio,
especialmente o ENEM e os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio
PCNEM, buscando tecer algumas considerações sobre as relações entre o
currículo e a avaliação, no que tange aos conteúdos históricos considerados
pelo Estado como necessários ao estudante que passou pela Educação Básica
obrigatória.
CON-TEXTOS
Esta parte ocidental do mundo da qual somos
periferia revolveu-se durante todo o século passado temendo o totalitarismo e
as ditaduras, sonhando e ansiando pela liberdade e pela democracia. Expressão
dramática dessa apreensão é o livro 1984, do escritor inglês George
Orwell, em que o autor traça impressionado pelo nazismo e pelo stalinismo uma
sociedade negativamente utópica, em que tudo e todos são controlados por um
poder central ao mesmo tempo familiar e desconhecido, presente em todos os
lugares e ao mesmo tempo de entranhas obscuras.
Nós, que chegamos ao século XXI, podemos avaliar
que Orwell errou e acertou. Nem o socialismo stalinista nem o nazismo vingaram,
mas o totalitarismo vem sendo construído sob o capitalismo liberal, nas grandes
ações da globalização e nos pequenos poderes locais e interpessoais. Na velha
Inglaterra, por exemplo, câmeras escondidas vão vigiando a tudo e a todos, e
por estas plagas a moda vai pegando... Testes revelam quem usa e quem deixa de
usar drogas, e um grande programa de computador dos órgãos de inteligência
norte-americanos monitora nossas navegações pela Internet. Mas, de fato, os
vaqueiros que tangem a humanidade encontram sua força no medo das pessoas, medo
de perder as pequenas compensações da submissão. Entretanto, não existe
natureza humana fechada e resolvida: temos potencialidade para a escravidão ou
para a liberdade. 1984 está chegando ou já passou?
Essas considerações servem para lembrar sempre nunca é
demais que as representações que os regimes e seus poderes fazem sobre si
mesmos (ou, num olhar mais benévolo, aquilo que querem ser) geralmente estão
descoladas do que efetivamente são, em termos de resultados observáveis. Não
seria necessário lembrar isso se a fala oficial não acabasse sendo tomada
acriticamente como expressão da realidade, como instrumento de classificação e
caracterização da vida política e social. Essas considerações dão o tom do
brevíssimo panorama que passaremos a traçar sobre as recentes reformas e os
atuais desafios do Ensino Médio e, nele, do conhecimento histórico, diante das
práticas de avaliação promovidas pelo Governo Federal, para iniciar, portanto,
colocando em dúvida os elementos que no discurso oficial são postos como
autonomia, flexibilidade e crítica. Por exemplo, o hiato entre o que é chamado
de flexibilidade e autonomia em documentos como a LDB 9394/96 e os Parâmetros e
Diretrizes Curriculares Nacionais, principalmente, e o contexto impositivo no
qual eles se apresentam ao professor, entre suas falas sobre cidadania e a
concepção de cidadania que as embasa, bem como embasa as atitudes do poder que
esses documentos significaram para o professor e para a escola.
O primeiro aspecto a destacar é a
internacionalidade dessas leis que se autodenominam nacionais, uma vez que
respondem prioritariamente a imperativos de organismos internacionais, bem como
a orientações assumidas como nacionais por tecnocratas formados e treinados sob
a ótica primeiromundista sobre os nossos problemas. A "inspiração" em
recomendações de órgãos como FMI, Banco Mundial e Banco Interamericano de
Desenvolvimento acarreta marcas profundas nesses programas, entre as quais
podemos destacar o economismo, o determinismo tecnológico, a racionalidade
técnica e o condicionamento da cidadania a ser formada.
A professora Maria Sylvia Bueno identifica nesses
documentos aquilo que chama de "idéias-força", ou seja, teses que
ganham força de dogma e que já vêm com embalagem inviolável nos pacotes
curriculares para o ensino, afetando sua constituição principalmente no que se
refere às Ciências Humanas. As idéias-força presentes na legislação federal
desde o início do mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso, pelo menos,
são "a suprema responsabilidade pelas transformações sociais delegada à
educação", "o conhecimento humano rebaixado a recurso estratégico do
desenvolvimento, confundido com informação", "a visão messiânica da
tecnologia", "o raciocínio economicista/empresarial subjacente aos
modelos educativos" e "um conceito de qualidade vinculado à
perspectiva empresarial de eficiência, eficácia e política de resultados",2
entre outras. Essas idéias-força vão interferir decisivamente na forma pela
qual essa legislação se relaciona com o professor e também nos conteúdos e seus
critérios de seleção. Marcos Soares indica que a tentativa de síntese entre
humanismo e tecnologia é o fundamento articular dessa proposta curricular.3
Sobre o professor, inicialmente, essas políticas acentuaram uma postura, nas
instâncias burocráticas, de desconfiança, desprestígio e disposição de
vigilância e direcionamento dele e de seu trabalho, naquilo que Giroux chamará
de "programas a prova de professor",4 ou seja, pensados para serem
implementados apesar do corpo docente.
Em primeiro lugar, é preciso esboçar a trajetória
dessas leis. Elas estão enraizadas no programa de governo do presidente
Fernando Henrique Cardoso, desenvolvem-se no Planejamento Político-Estratégico
do MEC de 1995 e em leis que foram sendo aprovadas no espírito da nova LDB
antes mesmo que ela fosse promulgada (como todos sabem, numa manobra
parlamentar que deixou para trás anos de participação e discussão acumuladas).
Ou seja, um projeto de partes integradas legitimado a posteriori, no
qual a discussão pública com os destinatários ocorre apenas como recurso
cosmético, para dar um ar de democracia à coisa toda. Muitos participaram de um
processo de consultas no momento de elaboração dos PCN, mas o processo foi
assistemático e não dialógico, os consultados não tiveram poder de decisão. Dá
uma tese investigar em que medida essa participação afetou a essência do
documento, que já estava posta anteriormente pelo MEC; minha hipótese é que
novamente estamos apenas diante de um ritual de legitimação de uma diretriz já
definida em seu âmago, que negocia apenas o que é acessório. A começar pela
própria necessidade ou não de fazer essas mudanças da forma e no âmbito em que foram
feitas. Infelizmente, essa prática encarnou-se em dirigentes e técnicos, de tal
modo que tende a ser reproduzida no atual governo do presidente Luiz Inácio
Lula da Silva, a exemplo da Reforma Previdenciária.
Todo esse quadro coloca para o professor uma
situação de "desconfirmação positiva", termos que José Terrero5 usa quando se refere à relação
entre a população empobrecida e a mídia, que louva o pobre no verbo mas
despreza-o na atitude monológica. O professor é submetido, na recepção desses
documentos, a uma comunicação que no aspecto verbal é democrática,
autonomizadora, crítica e flexível, mas no ato de impor-se como "verdade
pedagógica" desconfirma o docente, reduzindo-o a mero executor e ignorante
do seu próprio ofício. Nas palavras de Henry Giroux, os reformadores
educacionais têm respondido às crises na educação pública principalmente
oferecendo soluções que ignoram o papel dos professores na preparação dos
estudantes para se tornarem cidadãos críticos e ativos, ou sugerem reformas que
ignoram a inteligência, julgamento e experiência que os professores poderiam
trazer para resolver esses problemas.6
É evidente que esse processo de marginalização e
exclusão do professor não é exclusividade brasileira e nem algo inaugurado
pelas atuais políticas públicas para a educação. Tanto que existe a expressão
em inglês "teacher burnout", que poderia ser traduzida elegantemente
como "mal-estar docente", ou, como na fala cotidiana, "queimação
de professores", conforme o gosto do freguês. Essa síndrome, que leva ao
afastamento do profissional, tem entre suas causas um profundo desânimo diante
da profissão, que por sua vez tem como principais fatores a ausência de
autonomia, a sensação de impotência e a insatisfação crônica em relação aos
resultados do trabalho. Apenas recentemente os gestores públicos estão
começando a dar atenção às estatísticas de mal-estar docente. O que se constata
é que, apesar da verbalização em contrário, não há inovação no que se refere ao
papel do professor, que no final das contas é quem carregará toda a responsabilidade
de fazer isso tudo funcionar na sala de aula, sem ter opinado sobre como
fazê-lo. Resta perguntar: como o excluído pode incluir? 7
Para não nos estendermos demasiadamente nesta
contextualização, trataremos mais apenas do aspecto do "determinismo
tecnológico"/"racionalidade técnica" nessas orientações
curriculares. Os PCN só podem ser entendidos dentro do contexto no qual o
"discurso competente" sobre a educação não está mais nas falas dos
educadores, mas no dos economistas, pelo menos para o governo FHC, para seus
financiadores e seus teóricos. Confira-se a formação acadêmica do ex-Ministro
da Educação. Neste triunfal retorno da tecnocracia, o que chama a atenção não é
mais a desconfirmação positiva dos professores, nossa velha conhecida, mas a
subordinação das diretrizes para a Educação ao discurso
financeiro/econômico/empresarial. Nessa perspectiva de racionalidade técnica, quem
sabe determina, quem não sabe executa. Daí a considerar o professor como
"algoz incompetente" e foco da mudança educacional é um passo; com
esse passo vem também o processo de subjugação da autoridade do professor, num
processo de planejamento que é inócuo pois não é capaz de olhar o "chão da
escola". Não se propõe a entendê-la e ao professor, mas a normatizar. A
racionalidade técnica opõe-se à práxis reflexiva, é incapaz de ser empática em
relação ao professor, e, arrisco-me a dizer, incapaz de resolver a crise da
educação porque jamais poderá conseguir o engajamento voluntário, consciente do
professor, por não ser capaz de mobilizar o desejo da categoria. E não se pode
negar a margem de autonomia que o professor constrói, em processos de
resistência que vão desde a crítica aberta até a "negligência" com o
processo educativo, passando pelos mais variados graus de fingimento, pelos
quais consegue parecer, diante do olhar burocrático, que está a fazer o que lhe
determinam, quando efetivamente está a fazer o que entende como correto.
CONTEÚDOS DE HISTÓRIA NO ENSINO MÉDIO
A primeira coisa que causa estranhamento a quem lê
os PCNEM é a utilização da expressão "Ciências Humanas e suas
Tecnologias". O estranhamento do leitor ganha uma resposta: trata-se de
uma perspectiva que procura uma síntese nova entre o ideal formativo de
cidadãos, das humanidades, e a tecnologia que preenche os horizontes
contemporâneos. Por que o ensino de humanidades no século XIX não precisava
referir-se à tecnologia, que naquele momento também tinha um papel
revolucionário, guardadas as devidas proporções? Talvez porque hoje a
tecnologia tenha inundado o cotidiano envolvendo tudo, ou talvez porque a
"tecnologia" seja um objeto (ou um sujeito) de reverência, por
parecer um fenômeno impessoal que nos carrega a todos como uma tromba d'água! "Tecnologia"
parece, então, uma dessas coisas sobre as quais não temos nenhum controle
enquanto espécie, como o fato de chover sempre na hora em que estamos indo ou
vindo de algum lugar, como o fato de fazer um calor infernal ou um frio
excessivo. Determinismo tecnológico. Tecnologia, mercado, representação
política, são essas coisas para as quais temos que preparar e adaptar os
alunos, para que possam encontrar um lugar em meio a isso tudo e não sejam
excluídos. Daí pode-se depreender parte do conceito de cidadania que compõe o
conteúdo dos PCN, porque "formar o cidadão" é uma missão da História
desde que ela se instituiu enquanto disciplina, e o problema começa quando
queremos saber o que se está entendendo por cidadania.
Uma característica geral do conteúdo nos PCNEM é
que desaparecem as antigas listagens de conteúdos fatuais mínimos obrigatórios,
para dar espaço a orientações que têm por função estruturar os conteúdos que
pretensamente o professor vai escolher com liberdade. Avança no sentido de que
os conteúdos são finalmente institucionalizados como meio e não como fim, mas
devemos examinar mais de perto essa flexibilidade que nos é oferecida,
procurando nas noções jurídicas de lei e de norma o âmbito dessa liberdade.
As análises críticas de Michel Foucault fazem duvidar
se as regras estabelecidas de fato correspondem ao direito, na medida em que
põem em evidência um outro modelo de disciplina, que se pode chamar de militar,
não envolvendo a coerção direta nem formas externas de obediência,
garantindo-se através de um controle do tempo, dos trajetos e dos gestos das
pessoas submetidas (controle dos corpos em movimento). Pensar e planejar são
atribuições de quem tem o poder; obedecer rápida e eficientemente são as do que
se submete, ainda que essa obediência tenha toda a cara de uma seleção própria
dos conteúdos. Os PCNEM são positivos, normativos. Não surgem como
comportamento jurídico fundado sobre a lógica da lei, que é negativa,
estabelecendo o permitido e o proibido, mas respeitando a individualidade na
medida em que permite tudo o que não proíbe. Os PCNEM propõem um comportamento
disciplinar, fundado sobre a lógica da norma, que é positiva, ao determinarem
um padrão de comportamento médio ao qual todos devem adequar-se, com o que
substituem a espontaneidade e a iniciativa individuais, com base no discurso
científico. Traçam-se objetivos para a História e as humanidades no Ensino
Médio, os caminhos teóricos e metodológicos também são traçados e travados. A
mobilidade do professor é posta apenas a partir daí, na hora de selecionar o
que ensinar, e os objetivos e os critérios de seleção já estão dados.
Ao mesmo tempo em que se estabelece uma pretensa
igualdade em que todos aparecem igualmente como definidores de conteúdos, essa
igualdade é corroída pela existência de uma hierarquia que reduz a liberdade de
quem está na base. A crítica de Foucault para o contrato social, que vale para
o que estamos analisando, é que esse contrato supõe igualdade formal entre
todos, mas a disciplina corrói essa igualdade na medida em que estabelece
pessoas que organizam a disciplina e as normas e pessoas que se submetem a elas.8
Outro dado interessante dos PCNEM é que eles
assumem uma incômoda didática para o professor, explicando-lhe detidamente o
que é, por exemplo, o tempo histórico. Admitamos que existem professores que
não conhecem esse assunto; mas assumir tal postura no texto que equivale a um
currículo nacional dá-nos um indício significativo do perfil do professor que é
imaginado pelo MEC, de qual é a imagem de professor que articula os PCNEM.
Vamos agora listar algumas das diretrizes para a
seleção dos conteúdos de História segundo os PCNEM, com um duplo objetivo:
comentá-las criticamente e possibilitar conferir a sua presença nos conteúdos
que são exigidos pelo ENEM.
Estruturação do conteúdo por temas articulados em
torno da construção de conceitos. O documento assume a impossibilidade da tarefa que
é tentada pelos defensores da História Integrada, de abordar "toda a
História", impossibilidade aliás já apontada há muito tempo pelos
professores de História do Ensino Médio, dispondo de poucas horas semanais por
turma. Os PCNEM propõem dar uma ordenação diferente da cronológica a um ensino
que já é constituído de uma seleção de conteúdos, por razões pragmáticas.
Privilegiamento dos conteúdos de História nacional, conectados à História Geral por
relações de contexto. Os PCNEM, bem como os PCN para o Ensino Fundamental, não
escondem sua intenção nacionalizadora, de formação de identidade comum aos
brasileiros, postura que é inerente a uma política pública que retoma, após
quase 70 anos, o papel centralizador do Governo Federal na legislação sobre os
currículos, e que nacionaliza a avaliação da sua aplicação. A nacionalização
não pode ser definida a priori como positiva ou negativa, porque essa
avaliação depende dos valores do sujeito bem como das múltiplas variáveis do
contexto no qual ele se efetiva. Mas essa advertência também serve para
identificarmos a faca de dois gumes que se coloca diante de nós. A
nacionalização via educação pode tanto preparar as consciências para guerras
por mercado quanto mobilizar populações por sua independência. Resta perguntar
para que é que seguiremos centrados numa estruturação dos conteúdos com base na
idéia de nação, a quem isso serve; trata-se de mais um dos consensos decretados
sem discussão e que tende a ser tomado como dado da realidade e não como opção
de uma política educativa e cultural do atual governo.
Padrão interdisciplinar, por exemplo entendendo o
desenvolvimento histórico em articulação com a ocupação do espaço. Embora
existam conteúdos e objetivos específicos da História, os PCNEM apontam para o
ensino integrado das Humanidades. Se por um lado subsiste uma postura das mais
defendidas em termos de ensino-aprendizagem, por outro é preciso tomar cuidado
para que a especificidade da História não se perca, até porque o texto oficial
não aponta para a fragmentação desses conteúdos em disciplinas, mas a sua
integração em práticas educativas unificadas.
Produção de "condutas de indagação". É interessante fazer um
exercício de imaginação: o que o documento, no contexto da política
educacional, compreende por condutas de indagação, espírito de investigação e
expressões assemelhadas? Qual a profundidade dessa atitude questionadora a ser
implementada? Sim, porque existem diferentes níveis de indagação, como existem
diferentes níveis de crítica. Por exemplo: "o Brasil não tem jeito porque os
políticos são ladrões", é uma frase que, independentemente da
superficialidade, é uma frase crítica. É esse tipo/nível de crítica que a
indagação produzirá, ou é outro? Podemos ficar na dúvida, porque a implantação
dos PCN depende da aceitação de pressupostos que não são discutidos, como já
dissemos, depende de uma conduta do professor oposta à indagação dos princípios
de sua prática, princípios filosóficos e políticos que se cristalizam no
currículo.
Compreensão das tecnologias associadas à área. A tecnologia é um fetiche dos
PCNEM de uma forma geral, um objeto de fascínio que é assumido como sujeito
histórico, sem que haja uma recuperação do seu estabelecimento como chave
explicativa da contemporaneidade, e isso constitui mais um dos dogmas fundantes
da reforma curricular cuja implantação estamos discutindo. Esse fetiche obriga
à genuflexão verbal da expressão "Ciências Humanas e suas
tecnologias", fazendo que esse campo do conhecimento seja obrigado a
conviver com um termo que historicamente não tem servido para expressar o
produto do seu trabalho. Pode-se interpretar que essa terminologia expressa a
atribuição de uma função utilitária imediata para as Humanidades, pois
predominam assuntos relativos a resultados da ação das Ciências Humanas para
melhoria do mundo do trabalho (gestão dos indivíduos e dos grupos,
planejamento, obtenção e organização de informações, e assim por diante),
enquanto escasseiam propostas para a discussão política e social do mundo do
trabalho em si, se ele interessa ou não como está para o sujeito que o estuda.
Adaptar-se para sobreviver, em vez de compreender para transformar. O "fim
da História" orienta o ensino da História e das Humanidades para o texto
dos PCNEM, e nesse sentido é interessante perguntar até que ponto os conteúdos
de História são realmente históricos, no sentido de permitirem pensar o
significado dos fatos a partir do inédito e da criação, em vez de fixarem a
origem e o significado dos fatos, oferecendo signos fixos e constantes que
neutralizam toda contradição possível entre o que está dado e o que pode surgir
historicamente, ditando então normas fechadas para a ação e o progresso.9
Não que as Ciências Humanas sejam diletantes, mas sua função primordial é
pensar e partilhar o ato de pensar o homem em relação ao mundo, o que não se
encaixa imediatamente com a produção de bens passíveis de um emprego econômico.
Diante disso tudo, para selecionar seu conteúdo, o professor precisa estar
atento à subjetivização da tecnologia, a sua assunção como causa, substituindo
a ação de pessoas, grupos, classes sociais, regimes. Porém, se a intenção é
fortalecer o papel das Humanidades diante das disciplinas referenciadas nas
ciências propriamente produtoras de tecnologias, então o que ocorre é um duplo
equívoco: de imaginar, ratificando o senso comum, as disciplinas referenciadas
nas Ciências Humanas como hierarquicamente inferiores, e de imaginar que dando
a elas o status de produtoras de tecnologia, reforçam-se em termos de
importância no currículo e na prática escolar.
Competências como metas às quais a seleção de conteúdos
e sua didatização deverão estar atentas (representação e comunicação,
investigação e compreensão, contextualização sócio-cultural). Essa disposição
poderia fazer-nos imaginar alguma semelhança com as reformas curriculares de
História marcadas pelo liberalismo da velha Inglaterra em meados da década de
1980, em que, para o ensino secundário foram definidas metas em termos
cognitivos e de habilidades, que permitiam ao professor utilizar qualquer
programa, metodologia ou conteúdo, desde que essas metas fossem atingidas.10
Os PCN, entretanto, como já afirmamos, são bem mais prescritivos. Mas é
importante registrar o posicionamento de que as competências não são
construídas na escola, mas sim nas situações reais de vida e trabalho, uma vez
que a "pedagogia das competências" tem dificuldades em compreender as
especificidades do conhecimento tácito em relação ao conhecimento formal e
organizado, da escola.11
CONHECIMENTO HISTÓRICO E O ENEM
Numa visão geral, as seis edições do ENEM até 2003 12 trazem setenta questões que
podem ser consideradas dentro do campo do conhecimento histórico, ainda que não
se possa afirmar que existam questões estritamente voltadas para a disciplina;
pelo contrário, as questões articulam conhecimento histórico com elementos
gerais das "humanidades", de acordo com a proposta de áreas presente
nos PCNEM. Para chegar a esse número, consideramos apenas as questões nas quais
o conhecimento histórico informações ou conceitos é requerido indispensável ou
acessoriamente para a resolução do enunciado. Essa distinção precisa ser feita
porque muitas das questões envolvem temas históricos (o que pode ser
interpretado como um esforço no sentido de praticar a interdisciplinaridade
enunciada nos PCNEM), mas apenas na condição de pano de fundo, ou seja, seus
enunciados não demandam conhecimento histórico para a resolução do que se pede,
remetendo na verdade a conhecimentos de outras disciplinas, como a Matemática
ou a Geografia. Além disso, o conhecimento histórico em uma grande parte dos
casos parece constituir apenas um pretexto para a avaliação de capacidades
cognitivas (as "competência e habilidades"): na medida em que o
próprio enunciado das questões fornece informações, idéias e conceitos, com
algum conhecimento geral e habilidade de interpretação de texto e
estabelecimento de relações, entre outras, é possível responder às questões.
Saber história acaba aparecendo como elemento facilitador na maior parte das
questões, mas não como elemento decisivo. Exatamente oposta ao outro tipo de
avaliação, que se baseia na memorização de informações. Vejamos o seguinte
exemplo, extraído da prova de 1999:
Considere os textos abaixo:
(...) de modo particular, quero encorajar os
crentes empenhados no campo da filosofia para que iluminem os diversos âmbitos
da atividade humana, graças ao exercício de uma razão que se torna mais segura
e perspicaz com o apoio que recebe da fé.
(Papa
João Paulo II. Carta Encíclica Fides et Ratio aos bispos
da Igreja Católica sobre as relações entre fé e razão, 1998)
As verdades da razão natural não contradizem as
verdades da fé cristã.
(São Tomás de Aquino, pensador medieval)
Refletindo sobre os textos, pode-se concluir que
(A) a encíclica papal está em contradição com o
pensamento de São Tomás de Aquino, refletindo a diferença de épocas.
(B) a encíclica papal procura complementar São
Tomás de Aquino, pois este colocava a razão natural acima da fé.
(C) a Igreja medieval valorizava a razão mais do
que a encíclica de João Paulo II.
(D) o pensamento teológico teve sua importância na
Idade Média, mas, em nossos dias, não tem relação com o pensamento filosófico.
(E) tanto a encíclica papal como a frase de São
Tomás de Aquino procuram conciliar os pensamentos sobre fé e razão.
Percebe-se que não é necessário ao leitor conhecer
o pensamento de São Tomás de Aquino, uma vez que a atividade cognitiva
solicitada é a correta interpretação dos textos e a comparação entre os mesmos.
Das setenta questões identificadas, a composição
por períodos históricos abordados é aproximadamente a seguinte:
1 questão refere-se especificamente à História
Antiga e duas referem-se especificamente ao período Medieval;
8 questões podem ser encontradas versando sobre a
História Moderna e 24 sobre História Contemporânea;
5 questões abordam o período da América Portuguesa
e outras cinco abordam o Brasil Imperial, enquanto 24 abordam o Brasil
Republicano, com uma larga vantagem para o período após 1950. Deve-se
considerar que existem questões que envolvem mais que um período histórico, nove
das quais pedem comparações sobre conteúdos de dois ou mais períodos;
4 questões não se referem a nenhum período em
especial, tratando de questões teóricas: duas sobre relatividade cultural, uma
sobre conhecimento (científico/religioso) e uma quarta sobre periodização.
Nesse quadro, podemos observar a realização de um
dos princípios dos PCNEM, que consiste em privilegiar períodos e problemas
referidos mais diretamente ao presente. Se por um lado essa postura valoriza,
ou melhor, estabelece como imprescindível o concurso da História para a
compreensão do mundo atual, por outro ela coloca em xeque a própria motivação
de trabalhar com a História e fazer referência ao passado da experiência
humana, uma vez que, quanto mais distante no tempo, menos o período é considerado
significativo para a compreensão da contemporaneidade. Essa lógica
des-historiciza a reflexão sobre a relação entre o passado e o presente, e está
ligada a uma postura que pode ser lida como utilitarista: na medida em que o
currículo, na visão neoliberal que o embasou, é destinado a capacitar os jovens
para que se adaptem ao mundo globalizado, de que servem conhecimentos sobre um
passado distante? Esse conhecimento erudito, argumenta-se, é resquício de uma
era em que a educação destinava-se às elites ociosas, e não à formação das
classes trabalhadoras; perigoso, esse raciocínio pode ser continuado da
seguinte maneira: se o objetivo da educação é formar trabalhadores, por que
ensinar-lhes algo além daquilo que precisarão para entender seu ofício, seja
ele de dizia Gramsci ao referir-se ao ensino das línguas clássicas "camareiro,
intérprete, correspondente comercial"? Para que ele precisará de
conhecimento histórico?
Não se trata de retomar a defesa da prioridade dos
estudos clássicos, mas de questionar a compreensão de utilidade do conhecimento
histórico que os PCNEM apresentam e que o exame das questões do ENEM confirma.
Equivocadamente, o conhecimento parece tanto mais útil e concreto para o aluno
quanto mais próximo ele estiver do presente, o que é um erro, uma vez que a
"concretude" de um saber não passa necessariamente pela sua
proximidade espacial ou temporal, sobretudo num mundo ocupado pela comunicação
de massa. Pelo contrário, a "concretude" ou a "utilidade"
de um conhecimento histórico estão muito mais dadas pela sua possibilidade de
dialogar com o presente e escavar seus significados, compondo um conjunto
significativo. O pequeno número de questões comparativas entre períodos é um
outro indicativo desse problema.
Pedro Paulo Funari, ao contrário, demonstra que,
para além de uma formação cultural elitista, o conhecimento da História Antiga,
se aprofundado e criterioso, permite perceber tanto as raízes de fenômenos da
contemporaneidade quanto a heterogeneidade de sujeitos e visões de mundo que
podem alimentar as discussões sobre conflitos, opressão e a questão do poder na
construção da narrativa histórica.13
Retomemos, agora, uma questão já delineada: qual a
relação entre os conteúdos históricos, as habilidades referentes ao método e ao
pensamento histórico e os quesitos exigidos na resolução das questões? Em
outros termos: se argumentamos anteriormente que a avaliação na terminalidade
do ensino médio seja o exame vestibular, seja o ENEM tem força de currículo,
devemos perguntar como se constitui essa influência, no caso do ENEM: que temas
impõem-se como conteúdos para o aluno que será um virtual candidato ao exame?
Quais as características do ensino de História que o ENEM estimula?
Vejamos a seguinte questão, do ENEM de 1998:
A figura de Getúlio Vargas, como personagem
histórica, é bastante polêmica, devido à complexidade e à magnitude de suas
ações como presidente do Brasil durante um longo período de quinze anos
(1930-1945). Foram anos de grandes e importantes mudanças para o país e para o
mundo. Pode-se perceber o destaque dado a Getúlio Vargas pelo simples fato de
este período ser conhecido no Brasil como a "Era Vargas".
Entretanto, Vargas não é visto de forma favorável
por todos. Se muitos o consideram como um fervoroso nacionalista, um
progressista ativo e o "Pai dos Pobres", existem outros tantos que o
definem como ditador oportunista, um intervencionista e amigo das elites.
Considerando as colocações acima, responda à
questão seguinte, assinalando a alternativa correta. Provavelmente você
percebeu que as duas opiniões sobre Vargas são opostas, defendendo valores
praticamente antagônicos. As diferentes interpretações do papel de uma
personalidade histórica podem ser explicadas, conforme uma das opções abaixo.
Assinale-a:
(A) Um dos grupos está totalmente errado, uma vez
que a permanência no poder depende de idéias coerentes e de uma política
contínua.
(B) O grupo que acusa Vargas de ser ditador está
totalmente errado. Ele nunca teve uma orientação ideológica favorável aos
regimes politicamente fechados e só tomou medidas duras forçado pelas circunstâncias.
(C) Os dois grupos estão certos. Cada um mostra
Vargas da forma que serve melhor aos seus interesses, pois ele foi um
governante apático e fraco um verdadeiro marionete nas mãos das elites da
época.
(D) O grupo que defende Vargas como um autêntico
nacionalista está totalmente enganado. Poucas medidas nacionalizantes foram
tomadas para iludir os brasileiros, devido à política populista do varguismo, e
ele fazia tudo para agradar aos grupos estrangeiros.
(E) Os dois grupos estão errados, por assumirem
características parciais e, às vezes conjunturais, como sendo posturas
definitivas e absolutas.
A resposta correta no gabarito é a (E). À parte do
problema que consiste em colocar a questão em termos de certo ou errado, cabe
refletir sobre o que ocorre com o aluno se o seu professor, nos recortes
temáticos que fez, não privilegiou a "Era Vargas". Ele está em
desvantagem, com certeza, mas não derrotado, uma vez que conseguirá responder à
questão se mobilizar um dado fundamental da historicidade, que é a relatividade
das opiniões. Outra questão: o professor terá como não privilegiar esse
período? Ou continuamos diante de um rol de conteúdos que, embora não ditos
assim, continuam sendo obrigatórios? Nesse sentido, até onde vai a liberdade de
fazer os recortes temáticos? Que conhecimentos, que competências o aluno deverá
ter para mobilizar na solução dessa questão? Percebamos que, apesar da
indefinição de um conteúdo e da anunciada liberdade de selecioná-los conforme o
entendimento do professor, o que se apresenta é a perspectiva de o ENEM acabar
fazendo a seleção de conteúdos que os PCNEM não fizeram, ou seja, de o Exame
acabar ganhando um caráter de determinação dos conteúdos curriculares ao qual
aparentemente os PCNEM teriam renunciado, resultando no que os
"cursinhos" fazem hoje com a reserva de tempo de aula para cada
assunto, conforme a freqüência em que tal ou qual assunto é cobrado nos
vestibulares.
Seguindo outro rumo, suponhamos que seja possível
responder a essa questão apenas com um conhecimento superficial sobre o tema. O
aluno deverá mobilizar a competência de enfocar e avaliar a História diante de
fontes que se contradizem, pois deverá ser capaz de desenvolver a noção de que
são os sujeitos históricos que escrevem a História a partir de seu ponto de
vista. Deverá ser capaz, também, de dimensionar o peso de cada um desses
documentos para estabelecer um conhecimento sobre o período. Entretanto, esse
dimensionamento será colocado pela questão apenas em termos de
"certo" e "errado", prestando um desserviço a todo o
trabalho que o professor tenha porventura feito de mostrar ao aluno a
complexidade da produção das narrativas. A estrutura do exame não permitirá ao
aluno expressar isso, pois constitui-se de alternativas fechadas que no fundo
controlam os raciocínios: a prova não se interessa por eles, mas apenas pelo
resultado "certo", que deve decorrer de um raciocínio
"certo".
A questão seguinte, do ENEM de 1999, tem outros
encaminhamentos para o conteúdo e exigências para o trabalho do aluno:
Em dezembro de 1998, um dos assuntos mais
veiculados nos jornais era o que tratava da moeda única européia. Leia a
notícia destacada abaixo:
O nascimento do Euro, a moeda
única a ser adotada por onze países europeus a partir de 1º de janeiro, é
possivelmente a mais importante realização deste continente que nos últimos dez
anos assistiu à derrubada do Muro de Berlim, à reunificação das Alemanhas, à
libertação dos países da Cortina de Ferro e ao fim da União Soviética. Enquanto
todos esses eventos têm a ver com a desmontagem de estruturas do passado, o
Euro é uma ousada aposta no futuro e uma prova da vitalidade da sociedade
Européia. A "Euroland", região abrangida por Alemanha, Áustria,
Bélgica, Espanha, Finlândia, França, Holanda, Irlanda, Itália, Luxemburgo e
Portugal, tem um PIB (Produto Interno Bruto) equivalente a quase 80% do
americano, 289 milhões de consumidores e responde por cerca de 20% do comércio
internacional. Com este cacife, o Euro vai disputar com o dólar a condição de
moeda hegemônica. (Gazeta Mercantil, 30/12/1998)
A matéria refere-se à "desmontagem das
estruturas do passado" que pode ser entendida como:
(A) O fim da Guerra Fria, período de inquietação
mundial que dividiu o mundo em dois blocos ideológicos opostos.
(B) A inserção de alguns países do Leste Europeu em
organismos supranacionais, com o intuito de exercer o controle ideológico no
mundo.
(C) A crise do capitalismo, do liberalismo e da
democracia levando à polarização ideológica da antiga URSS.
(D) A confrontação dos modelos socialista e
capitalista para deter o processo de unificação das duas Alemanhas.
(E) A prosperidade das economias capitalista e
socialista, com o conseqüente fim da Guerra Fria entre EUA e a URSS.
A questão exige como competência central a de
interpretar o texto; subsidiária, mas imperativamente, o aluno tem que possuir
uma interpretação sobre a Guerra Fria. Diferentemente da questão anterior, esta
não pode ser respondida contando apenas com habilidades gerais que são
desenvolvidas no estudo da História. Voltamos à problemática anterior: os
recortes temáticos não são livres, obedecem a uma pauta de assuntos que não é
explícita, mas está sendo agendada pelo ENEM e pelos vestibulares ainda. O
ensino da História no Ensino Médio não pode se dedicar plenamente à formação da
capacidade de pensar historicamente, pois deverá também vencer essa pauta de
conteúdos. Depois de uma longa viagem, voltamos ao mesmo ponto: quem, quando,
como, por que, para que e para quem os conteúdos são definidos? Apesar dos
avanços da prova, não se pode afirmar ingenuamente que os conteúdos passaram à
condição de meio, e não de fim, e apenas aparentemente as competências tomaram
o lugar dos conteúdos na fila do que será cobrado do aprendiz das Ciências
Humanas no Ensino Médio. A análise do recorte cronológico das questões é um
indicativo disso, mas uma breve reflexão sobre os recortes temáticos pode
ajudar a ir um pouco além nesse raciocínio.
DESAFIOS DA RECOMPOSIÇÃO DIDÁTICA DOS CONTEÚDOS DE
HISTÓRIA E CARACTERÍSTICAS DO PROFISSIONAL
O professor comprometido com a formação de sujeitos
da transformação social, com um pouco mais de liberdade (por exemplo, a de
cobrar a coerência com o que reza o texto oficial quando questionado sobre o
que o seu trabalho tem a ver com História), continuará tendo que burlar as
forças que produzem os sentidos para a educação e o querem reproduzir como
executor do que é pensado no "andar de cima". Os PCN realizaram um
fato que tem duas implicações: por um lado, eles "pasteurizam" as
bandeiras da massa crítica que questionou e mudou o ensino de História ao longo
dos anos 80 e início dos anos 90; por outro, ao absorver os seus cânones como
discurso oficial, abrem um sustentáculo para que se continue enfrentando as
resistências às transformações neste sentido.
O professor deverá equilibrar-se, mais ou menos
como hoje, entre a necessidade de construir coletivamente os sujeitos com a
habilidade de pensar o mundo e transformá-lo a partir dos instrumentais da
História e das demais Ciências Humanas, e a contingência pragmática de ensinar
os conteúdos que são exigidos pelos exames, entre formar o cidadão e treinar o
estudante para ser aprovado em concursos.
Esse mesmo professor tem diante de si, entretanto,
a possibilidade de ser sujeito até certo ponto dos seus conteúdos e materiais.
Dificilmente os livros didáticos como conhecimento hoje poderão dar conta dos
objetivos propostos para o ensino médio, e a relação de dependência em relação
a livros e apostilas fica reduzida em importância, pois mais que seguir enciclopedicamente
uma seqüência, cabe definir rumos próprios de realização de um trabalho cujo
objetivo não é acumular, mas propiciar experiências de crescimento qualitativo
do pensamento.
Apesar do tom predominantemente negativo deste
texto, não se pode deixar de reconhecer os PCN como um avanço em relação a
currículos nacionais anteriores, ressaltando principalmente a vitória sobre a
lógica da cronologia como princípio estruturador dos conteúdos da história. Não
se deve esquecer, entretanto, que os PCN, com sua voracidade unificadora,
passam por cima de dezenas de experiências curriculares regionais positivas,
ainda que se beneficiando de seus ganhos.
Pode-se optar pela tendência "panglossiana"
14 de que não estamos no melhor dos
mundos, mas no melhor dos mundos possíveis, com seu conformismo em relação ao
presente, ou pode-se optar por uma tendência a compreender quais seriam os
mundos possíveis, na recusa a simplesmente adaptar os alunos ao mundo atual,
treinando-os para a integração na "história terminada". Burlar os PCN
é apontar para os alunos a existência de diversos mundos possíveis, mostrar que
a História não é a explicação de como esses mundos foram recusados para que
tivéssemos apenas o mundo que temos, mas a explicação de que escolhas foram
feitas para que chegássemos à forma atual do presente, e que outras escolhas
podem ser feitas, se pudermos olhar para além da medíocre e decepcionante
"utopia do possível".
Nos PCN, os conteúdos apenas são móveis, e mesmo
assim de forma controlada, como já afirmamos. Os objetivos, a teoria e a
metodologia vêm travados, definidos. Burlar os PCN é desmontar esse mecanismo,
rejeitando a etiqueta que diz que "aqui não há peças passíveis de ajuste
pelo usuário, procure um serviço autorizado", e destravar objetivos,
teoria e metodologia. Não se contentar com a liberdade de seleção dos
conteúdos. Discutir aquilo que é decretado como consenso.
NOTAS
1
A primeira versão deste texto foi apresentada em mesa redonda do evento
"PCN em sala de aula: que história é essa", promovido pelo GT de Ensino
de História da Educação da Anpuh-PR e pelo Colégio Positivo, em fevereiro de
2002. Para a atualização do texto com as novas questões do ENEM, contei com
ajuda dos alunos do Plano de Acompanhamento de Estudos em Oficina de Ensino de
História da UEPG.
2
BUENO, M. S. S. Orientações nacionais para a reforma do ensino médio: dogma e
liturgia. In: Cadernos de Pesquisa, n.109, p.7-23, mar.2000, p.9.
3
SOARES, M. A. N. O ensino de História presente nos Parâmetros Curriculares do
Ensino Médio (PCNEM): A construção do sujeito adequado. História &
Ensino. Londrina, PR, v.8, p.29-44, out 2002.
4
GIROUX, H. Os professores como intelectuais. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1997.
5
"Os meios de comunicação social que constituem um dos mecanismos mais
representativos do intercâmbio comunicacional entre as classes, do modo como
funcionam atualmente, em geral agem de forma destrutiva, no sentido da 'desconfirmação
positiva': mesmo que seus conteúdos pareçam amáveis e comedidos, informativos e
divertidos, a outra dimensão de sua mensagem total 'desconfirma' a maioria da
população, ignorando as pessoas e tratando de 'massificar' ou despersonalizar".
TERRERO, J. M. Comunicação grupal libertadora. São Paulo: Paulinas,
1988, p.18.
6
GIROUX, H. apud SILVA, M. H. G. F. D. da. O professor e seu
desenvolvimento profissional: superando a concepção do algoz incompetente. Caderno
do CEDES. Campinas, SP, v.XIX, n.44, p.33-58, abr.1998, p.37.
7
Ver, a esse respeito, o editorial de Paulo Eduardo Dias de Mello,
"Pedagogia da Inclusão", para o jornal Bolando Aula de História.
Santos, SP, n.22, maio.2000.
8
Esta abordagem de Foucault vem com o filtro de CANIVEZ, P. Educar o cidadão.
Ensaios e textos. Campinas, SP: Papirus, 1991, p.45-52.
9
Cf. CHAUÍ, M. Cultura e Democracia: o discurso competente e outras
falas. 5.ed. São Paulo: Cortez, 1990, p.28.
10 SYLVESTER, D. Change and continuity in history teaching. 1900-93. In:
BOURDILLON, H. Teaching History. London, New York: Open University,
1996, p.18.
11
Ver, entre outros, KUENZER, A. Z. Conhecimento e competências no trabalho e na
escola. Caxambu, MG: 25ª Reunião Anual da ANPED, 2002. Disponível em www.anped.org.br/25/sessoesespeciais/acaciazeneidakuenzer.doc, acessado em 9.maio.2003.
12
Apesar de, a partir de 2003 o ENEM ser realizado sob a orientação do governo
Lula, trata-se de mais um dos casos em que o programa criado no governo
anterior recebe continuidade sem uma rediscussão crítica.
13
FUNARI, P. P. A importância de uma abordagem crítica da História Antiga nos
livros escolares. Disponível em www.nethistoria.com/index.php?pagina=
ver_texto&titulo_id=186, acessado em 27.ago.2004.
14
Ver o Cândido, de Voltaire.
Artigo recebido em 09/2004. Aprovado em 10/2004.