sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

AVALIANDO A AVALIAÇÃO ESCOLAR: NOTAS ESCOLARES E INTELIGÊNCIA FLUIDA

Blog PREPARANDO-SE PARA O ENEM E/OU VESTIBULARES, de autoria de Álaze Gabriel.


Autoria:
Cristiano Mauro Assis Gomes - Doutor em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais, Professor Adjunto da Universidade Federal de Minas Gerais

RESUMO

Segundo o ENEM, o ensino deve promover o desenvolvimento da inteligência (competências). Este artigo discute a qualidade de duas avaliações escolares enquanto indicadores desse princípio. Foram realizados dois estudos. O primeiro analisa dados de 230 estudantes de uma escola da rede federal de Ensino Médio de Belo Horizonte e o segundo faz o mesmo procedimento em relação a 273 estudantes do ensino médio de uma escola particular da mesma cidade. Foram empregados os mesmos instrumentos e métodos de coleta e análise de dados nos dois estudos, para fins de comparação dos resultados. Foram analisadas relações entre inteligência fluida, notas escolares e uma competência escolar geral. Foi utilizado o modelamento por equações estruturais. Os resultados indicaram que as avaliações escolares dos dois estudos se relacionaram aos princípios do ENEM. As implicações são analisadas e discutidas.

Palavras-chave: Avaliação; inteligência fluida; aprendizagem.

INTRODUÇÃO

Desde os anos de 1990 têm ocorrido transformações no campo da avaliação da aprendizagem discente no Brasil. Esse contexto de mudanças faz parte de políticas públicas que têm estabelecido como prioridade a equidade, a qualidade do ensino, o foco no raciocínio e o desenvolvimento de habilidades cognitivas de alto nível. 
O Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) é uma ferramenta que provém do contexto de mudanças apontado. Sua finalidade é o diagnóstico anual em larga escala da qualidade da formação do estudante brasileiro que finaliza a educação básica. Devido à sua importância, em 25 de março de 2009 o ministro da educação Fernando Haddad enfatizou o papel do ENEM como ferramenta de seleção para o ensino superior, propondo que esse exame passe a ser utilizado como substituto do vestibular em instituições federais de ensino superior. Segundo o argumento do ministro, além de gerar um sistema único de avaliação, a utilização do ENEM tem como motivo a reorganização do Ensino Médio brasileiro, valorizando uma educação voltada ao raciocínio, e não à mera decoração ou memorização.
Um novo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) pode substituir os vestibulares das universidades. Essa é a proposta apresentada nesta quarta-feira, 25, pelo Ministério da Educação à Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes). A intenção é que a prova ajude a reorganizar o currículo do ensino médio e permita maior mobilidade dos estudantes pelas universidades em todo o território nacional, por causa do modelo unificado de avaliação.
De acordo com o ministro da Educação, Fernando Haddad, a prova deverá ser mais voltada para a investigação e não para a memorização, para avaliar a capacidade analítica e o raciocínio do aluno, diferente dos vestibulares atuais (Brasil, 2009).
O motivo do uso do ENEM como possível substituto do vestibular está alicerçado na gestão do uso de ferramentas de avaliação. É mais adequado formalizar e estruturar um sistema integrado que avalia o aluno e a qualidade da sua formação. Por sua vez, a gestão integrada de ferramentas não é o único motivo, mas há um segundo, que é mobilizar a aceleração de mudanças na educação básica brasileira, de modo a fomentar a melhoria da qualidade do ensino. Ao avaliar o raciocínio, o ENEM estipula um juízo de valor sobre o que é adequado, em termos educacionais, e sobre o que o ensino brasileiro deve valorizar e definir como metas para seu alcance.
Desde o seu nascimento, o ENEM propõe medir competências mentais, definidas como modalidades estruturais da inteligência (Brasil, 1998, 2000, 2001). Em função dessa proposta, as provas do ENEM são feitas de forma a mensurar a capacidade de raciocínio discente (Machado, 2005a; Murrie, 2005; Menezes, 2005; Guimarães, 2005). O ENEM busca romper com o tipo de educação que prioriza a mera memorização do tipo "decoreba", assim como impulsionar um ensino focado na educação do pensamento e na capacidade de aprender.
As competências mentais, alvo maior do ENEM, são definidas como a capacidade do estudante de: (1) dominar a norma culta da Língua Portuguesa e fazer uso das linguagens matemática, artística e científica (Condeixa, Murrie, Dias & Carvalho, 2005); (2) construir e aplicar conceitos das várias áreas do conhecimento para a compreensão de fenômenos naturais, de processos histórico-geográficos, da produção tecnológica e das manifestações artísticas (Menezes, Gualtieri, Guimarães, Lisboa & Kawamura, 2005); (3) selecionar, organizar, relacionar, interpretar dados e informações, representados de diferentes formas, para tomar decisões e enfrentar situações-problema (Macedo, Teixeira, Ferreira & Andrade, 2005); (4) relacionar informações, representadas de diferentes formas, e conhecimentos disponíveis em situações concretas, para construir argumentação consistente (Machado, 2005b); (5) recorrer aos conhecimentos desenvolvidos na escola com vistas à elaboração de propostas de intervenção solidária na realidade, respeitando os valores humanos e considerando a diversidade sociocultural (Martino, Krajewski, Júnior & Pastore, 2005).
Formadas por habilidades de pensamento (operações mentais) e estruturas de conhecimento (esquemas mentais), as competências da matriz do ENEM têm como fundamento o conceito de inteligência da teoria de Piaget, segundo a qual inteligência é a capacidade de formar relações de caráter reversível, cada vez mais complexas e abstratas. Segundo essa teoria, por meio da inteligência o ser humano é capaz de lidar com o novo de forma não superficial e estabelecer projeções criativas sobre os fenômenos e os objetos do mundo (Macedo, 2005a; 2005b; 2005c).
Devido ao foco no raciocínio, o ENEM postula princípios para a elaboração de suas provas. Segundo Fini (2005), todos os itens devem ser pautados pela condição de mobilizar situações-problema em que o enunciado e as demandas postas nas questões gerem desafios suficientes aos participantes, de forma a contemplar um problema efetivo a ser resolvido. Qualquer item deve oferecer as informações necessárias para as tomadas de decisão necessárias à resolução do problema proposto. As alternativas de resposta devem possuir coerência com o processo envolvido na resolução do problema, de modo a corresponder a respostas parciais para o problema ou erros previstos no processo.
Analisando-se as características dos itens da prova do ENEM, percebe-se o foco na capacidade de pensar. O aluno deve centrar-se em processos de interpretação de novos contextos, ao invés de preocupar-se exclusivamente em relembrar conceitos e procedimentos já aprendidos, na medida em que as informações estão disponibilizadas dentro do problema (Vianna, 2003). Nesse sentido, o ENEM pretende verificar se o aluno que finaliza a educação básica é capaz de pensar de forma abstrata, raciocinar e aplicar seu conhecimento, assim como verificar se a educação brasileira tem possibilitado uma formação discente capaz de atingir esse objetivo.
Conforme já argumentado, a prova do ENEM tem como um dos motivos fomentar mudanças na qualidade do ensino praticado pelas escolas brasileiras. É perceptível que esse exame tem causado impacto gradativo no trabalho docente (Zanchet, 2007). Do ponto de vista mercadológico, as escolas particulares têm utilizado um ranking que posiciona as escolas a cada ano, em termos do desempenho dos seus alunos no ENEM. Esse ranking é utilizado para fins de propaganda e divulgação da qualidade do ensino da escola (Castro, 2009). Implícita a esse "ranqueamento" está a ideia de que escola boa é aquela cujos alunos têm um bom rendimento no ENEM. Do ponto de vista pedagógico, essa ideia não é necessariamente ruim, na medida em que se espera que um bom desempenho no ENEM se articule a um bom desenvolvimento da habilidade de raciocinar e pensar em termos abstratos.
Um aspecto importante mas ainda pouco explorado pela sociedade brasileira diz respeito à relação entre o ensino oferecido pela escola e sua articulação com o compromisso de oferecer ao aluno uma boa formação. Através do Exame Nacional do Ensino Médio, o Brasil passou a possuir princípios e critérios nacionais do que seja uma boa formação do estudante que finaliza a educação básica. Pelas vias do ENEM, a sociedade possui parâmetros objetivos para verificar se as escolas têm oferecido uma formação adequada aos estudantes brasileiros. Em outras palavras, a partir do ENEM a sociedade ganha poder de cobrança.  Em termos práticos, a sociedade pode analisar uma nota baixa no Exame Nacional do Ensino Médio como um indicador da incompetência do sistema educacional em fornecer formação adequada ao aluno que finaliza a educação básica.
As condições apontadas são corroboradas por Martin (1998). Ele define que uma boa avaliação deve focar o desenvolvimento do aluno e avaliar os resultados gerados por programas de intervenção de largo alcance, com metas bem-definidas entre os diversos agentes envolvidos. Se as avaliações escolares têm relação com os postulados do ENEM, então elas devem servir como um indicador sobre como a escola tem participado do processo de desenvolvimento do estudante, em nível da sua formação básica. Martin (1998) salienta a importância de as avaliações serem objetivas, bem-elaboradas, construídas e validadas. Ele é contrário ao uso irrestrito da percepção das pessoas sobre a formação dos estudantes. Segundo ele, opiniões não são dados confiáveis, porque são carregadas fortemente por fatores subjetivos, sentimentos, vieses e outros processos psíquicos que não indicam o fenômeno visado. Confiar fortemente em opiniões significa obter dados inválidos, não adequados ao propósito de identificar a ocorrência de padrões de qualidade. Na melhor das hipóteses, opiniões são bons indicadores do grau de satisfação do cliente. Martin (1998) também defende que as avaliações não devem punir o professor. Em vez de atribuir a "culpa" ou a causa a algum agente específico, como o professor, a avaliação escolar deve ser utilizada para verificar a qualidade das estruturas presentes na escola e como essas estruturas têm permitido ao professor trabalhar e interferir na qualidade da formação do aluno. Neste sentido, ao avaliar o desempenho do aluno, as escolas teriam por missão fornecer bons indicadores sobre o desenvolvimento discente e buscar compreender como as estruturas da própria escola têm contribuído para um bom trabalho docente e uma formação adequada do estudante.
Os argumentos de Martinson (2000) complementam as ideias presentes em Martin (1998). Segundo Martinson (2000), a qualidade da avaliação escolar é bem trabalhada quando há uma efetiva discussão da missão da escola. Ele explica que um bom trabalho só pode ser definido dentro de um contexto. Bom trabalho é um juízo de atribuição que deve ser claramente declarado pela comunidade que compõe a instituição de ensino. A partir da comunhão de valores e expectativas, indicadores devem ser construídos de modo a garantir à comunidade escolar um bom acompanhamento sobre o processo de efetivação das metas a serem alcançadas. Tanto quanto a missão da escola, também os direitos e deveres da escola e dos estudantes devem ser bem definidos. Toda avaliação escolar deveria, em tese, ser um indicador que mobilizasse esforços educacionais por parte da escola e por parte do alunado e seus responsáveis.
Do ponto de vista da gestão escolar, ter o aluno e seus responsáveis como clientes implicaria obrigatoriamente em educar os clientes por meio da definição de algumas regras de relação. Martinson (2000) defende o argumento de que regras claras e bem-definidas, que não firam princípios éticos fundamentais e sejam construídas pela própria comunidade, garantem uma melhor relação entre os atores da comunidade e estabelecem com maior democracia os indicadores de qualidade, definidores do "bom" trabalho da escola. Articulado a isso, ele defende a necessidade de resgate da integridade acadêmica do professor e uma avaliação escolar cujo foco não sejam o imediatismo e a necessidade de agradar ao cliente a todo o custo. Segundo ele, uma comunidade escolar sadia deve se comprometer coletivamente com o desenvolvimento do estudante.
Os argumentos sustentados por Martin (1998) e Martinson (2000) expõem uma perspectiva de relação entre a avaliação escolar e a qualidade do serviço educacional. Estes pesquisadores não têm um ponto de vista que enfatize o cliente ou o mercado, em detrimento da qualidade - ao contrário, eles sustentam uma posição de conciliação. Eles consideram a necessidade de uma avaliação da qualidade dos serviços educacionais prestados que leve em conta o que é realmente importante do ponto de vista educacional. Eles afirmam que a avaliação não deveria ter como eixo a necessidade de agradar ao cliente. Ao contrário, deveria se basear em pressupostos fundamentais que alicerçam a missão institucional. Em outras palavras, a avaliação escolar deveria ser uma ferramenta capaz de mostrar à comunidade escolar se a missão institucional está sendo bem trabalhada pela escola.
A ausência de relação entre o raciocínio e as notas escolares dificulta que os postulados apontados por Martin (1998) e Martinson (2000) sejam efetivados. É no mínimo incongruente que uma escola valorize os resultados de seus alunos no ENEM e ao mesmo tempo possua um sistema de notas escolares que não valoriza os princípios básicos do próprio ENEM: foco no raciocínio e na capacidade de pensar de forma abstrata.
Em função das mudanças trazidas pelos princípios e critérios presentes no ENEM, à medida que as escolas brasileiras têm buscado atingir esses princípios por meio de ações variadas, uma questão importante envolve compreender se a avaliação do aluno realizada pela própria escola se articula a esses princípios. Ao formular essa questão, pergunta-se se a avaliação feita pela escola, em algum grau, acessa os princípios da boa formação postulados pelo Exame Nacional do Ensino Médio.
Pode-se postular que as escolas que avaliam o aluno de maneira articulada com os princípios do ENEM valorizam o raciocínio. Ao valorizar o raciocínio e enfatizá-lo em sua avaliação, a escola oferece ao estudante e seus responsáveis um indicador mais válido a respeito da qualidade da sua formação, em termos dos princípios e critérios estabelecidos em nível nacional. Ao mesmo tempo, ao oferecer um melhor indicador, a escola também informa mais adequadamente se tem sido capaz de alterar a rota do desenvolvimento do raciocínio do estudante, quando essa rota não satisfaz. Segundo Gomes e Borges (2009a), há evidências favoráveis de que as provas do ENEM prioritariamente mensuram o raciocínio. Esses autores encontraram evidências de que os escores de uma amostra de estudantes do Ensino Médio referentes à prova de 2001 do ENEM foram explicados, na maior parte da sua variância, pela habilidade de resolver problemas alicerçada principalmente no raciocínio.
O presente artigo busca avaliar a qualidade das notas de duas escolas da cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais. Uma dessas escolas é uma instituição de ensino médio da rede federal de ensino, reconhecida por ser uma escola técnica que possui uma seleção competitiva e apresenta um ensino de caráter mais construtivista. A segunda escola é uma instituição particular voltada para o mercado e apresenta um ensino mais tradicional, focado na transmissão do conteúdo. Ao escolher duas escolas com contextos diferentes, pretende-se verificar se as notas escolares presentes nessas instituições oferecem aos estudantes e seus responsáveis um bom indicador a respeito da qualidade da formação discente estabelecida pelos princípios do ENEM.
Para isso serão relatados dois estudos. Ambos investigam a relação entre a inteligência fluida (Gf), o rendimento nas notas e uma competência escolar geral (CEG). A inteligência fluida corresponde à capacidade das pessoas de aprender coisas novas que requerem pouco conhecimento prévio e de resolver problemas com maior teor de conteúdo abstrato. O raciocínio é um dos componentes da inteligência fluida (Gf). A competência escolar geral indica uma capacidade genérica de aprendizagem dos estudantes que explica o desempenho nas notas de todas as matérias escolares. O primeiro estudo investiga a relação entre Gf e CEG na instituição federal de Ensino Médio e o segundo investiga a mesma relação na instituição privada. Para fins de comparação, foram utilizados em ambos os estudos os mesmos instrumentos e os mesmos métodos de análise e tratamento de dados.

ESTUDO 1

Participantes

São analisados os dados de 230 estudantes de uma escola de Ensino Médio da rede federal de ensino da cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais, obtidos no ano de 2006. Quanto ao gênero, 107 (46,50%) participantes eram do sexo feminino. A idade variou entre 14 e 20 anos. De 21 alunos não foi possível saber a idade; 27 (11,70%) tinham 14 anos, 70 (30,40%) tinham 15 anos, 66 (28,70%) tinham 16 anos, 35 (15,20%) tinham 17 anos, seis (2,60%) contavam 18 anos, três (1,30%) tinham 19 e dois alunos (0,90%) tinham 20 anos.  Predominaram alunos da primeira série (52,60%). Os alunos da segunda série compuseram 28,30% dos participantes e os alunos da terceira série, 19,10%.

Instrumentos

Foi utilizado o Conjunto de Testes de Inteligência Fluida, constituído de três testes, descritos a seguir: teste de indução (I), teste de raciocínio lógico (RL) e teste de raciocínio geral (RG). Gomes e Borges (2009b) identificaram, com sua aplicação, boas propriedades psicométricas em uma amostra de estudantes do Ensino Médio.
O teste de indução (I) se constitui de 12 itens e tem um tempo-limite de 14 minutos para sua execução. Cada item é composto por cinco grupos de quatro letras. Entre os cinco grupos há quatro que apresentam um mesmo padrão e uma mesma regra de organização de suas letras. O respondente deve identificar o grupo que não apresenta esse padrão e marcá-lo com um x.
O Teste de Raciocínio Lógico (RL) é composto de 30 itens e tem um tempo-limite de 24 minutos para sua execução. Cada item é formado por uma conclusão proveniente de duas premissas lógicas que não têm nenhuma relação com o mundo. O objetivo é o respondente indicar se a conclusão presente no item é adequada ou inadequada às suas premissas. O respondente deve marcar uma de duas opções dadas.
O teste de raciocínio geral (RG) constitui-se de 15 itens e o tempo-limite para sua execução é 18 minutos. Cada item é formado por um problema lógico-matemático, composto por um enunciado e um espaço para sua resolução. O respondente deve interpretar o enunciado, resolver o problema e escolher uma das cinco opções de resposta  do conjunto de múltiplas escolhas.
O questionário sociodemográfico utilizado inclui solicitação de informações sobre gênero, idade e série. O item "notas escolares dos estudantes" compreende as notas anuais dos participantes nas disciplinas de química, física, matemática e português.

Coleta e análise de dados

Os testes foram aplicados conjuntamente, de forma coletiva, sempre por psicólogos ou estudantes de psicologia devidamente treinados. Foram tomados todos os cuidados éticos em relação aos participantes e a pesquisa contou com a aprovação do Comitê de Ética da UFMG (n. ETIC 181/06).
As notas escolares apresentavam o desempenho anual do estudante em cada disciplina do currículo e podiam variar de zero a 100 pontos e foram dispostas em cinco categorias: zero  - notas menores do que 60 pontos; um –notas entre 60 e 69 pontos; dois – notas entre 70 e 79); três  - notas de 80 a 89; e quatro  - notas de 90 a 100 pontos.
Para identificar a relação entre Gf e CEG foi utilizado o modelamento por equação estrutural, através do software Amos 16. Foram usados os índices CFI e RMSEA para verificar se as relações estipuladas pelo modelo de relações estruturais tinham bom grau de ajuste aos dados. O modelo era considerado adequado se possuísse CFI igual ou superior a 0,90 e RMSEA igual ou inferior a 0,08 (Byrne, 2001). Para identificação dos traços latentes do modelo foram utilizadas as seguintes variáveis: Os testes RL, RG e I foram definidos como marcadores de Gf; as notas em português, matemática, física, química e biologia foram definidas como marcadores da competência escolar geral.
Para averiguação do intervalo de confiança das cargas fatoriais obtidas no modelo foi realizado o procedimento de bootstrapping, através do método Monte Carlo, com intervalo de confiança de 90%. Esse procedimento foi feito pelo software Amos 16.

Resultados

O modelo estipulado e avaliado mediante o modelamento por equação estrutural define as relações expressas a seguir. A inteligência fluida (Gf) explica diretamente a variância das respostas dos participantes nos testes RL, I e RG. A competência escolar geral (CEG) explica a variância das notas escolares. Gf explica diretamente tanto a competência escolar geral como as notas em português e física. Gf explica indiretamente todas as notas escolares. Há uma covariação entre as notas em português e biologia. A variância do erro da medida em RL é a mesma variância do erro da medida em RG.
O modelo descrito possui satisfatório grau de ajuste aos dados (χ2= 33,27,  gl= 17, CFI= 0,98, RMSEA= 0,06). Do ponto de vista da relação entre Gf e o desempenho escolar, há algumas conexões. Uma delas é significativa, tanto do ponto de vista estatístico, como do ponto de vista do seu poder explicativo. Ela envolve a correlação entre Gf e CEG. A competência escolar geral dos estudantes é explicada em 27,30% de sua variância por Gf. O bootstrapping de 1000 casos e intervalo de confiança de 90% indica que a carga fatorial entre Gf e CEG varia entre 0,42 e 0,62, de forma que Gf explica a competência escolar geral entre 17,30% e 38,50%, o que é uma variância considerável, do ponto de vista de sua magnitude. Gf apresenta uma relação direta positiva com português e negativa com física. Essas relações diretas, apesar de estatisticamente significativas, são pouco importantes do ponto de vista de sua magnitude. As cargas fatoriais presentes não ultrapassam 0,30.
Há uma relação indireta de Gf com todas as notas escolares, medida pela competência escolar geral. Essa relação é estatisticamente significativa e pode ser considerada relevante do ponto de vista de sua magnitude. A carga fatorial de Gf em português é de 0,49 e varia entre 0,39 e 0,58 (bootstrapping de 1000 casos com um intervalo de confiança de 90%). A carga fatorial de Gf em matemática é de 0,44 e um intervalo de 0,34 a 0,53. Gf apresenta carga fatorial de 0,48 em química e intervalo de 0,38 a 0,57. Gf possui carga fatorial de 0,44 em biologia, variando entre 0,34 e 0,52. Gf apresenta carga fatorial de 0,34 em física e um intervalo entre 0,22 e 0,44.

ESTUDO 2

Participantes

Foram analisados os dados de 273 alunos do Ensino Médio de uma instituição particular de Belo Horizonte, Minas Gerais, obtidos no ano de 2008. 53,80% dos participantes eram do gênero feminino, com idade variando entre 12 e 18 anos (m = 15,86 e dp= 1,04). O número de participantes por série foi equilibrado. A primeira apresentou 33,00% do total da amostra, a segunda série apresentou 34,40% e a terceira série, 32,60% da amostra. 

Instrumentos

Os instrumentos utilizados no segundo estudo foram os mesmos do primeiro estudo. Uma única diferença ocorreu: não foram selecionados todos os itens dos testes RL, I e RG, mas um conjunto de itens de cada um desses testes. A opção por diminuir os itens deveu-se à logística da aplicação e ao menor tempo disponível para aplicação coletiva nas turmas da instituição escolar. As versões resumidas foram elaboradas de forma que cada teste não perdesse a distribuição original, em termos do intervalo da dificuldade dos itens. Para isso foi realizada uma análise da escala de cada teste, através da família de modelos Rasch. Por limitações de espaço esse procedimento não será relatado neste artigo. A versão resumida do teste I e do teste RG foi montada com oito itens de cada teste original. A versão resumida do teste RL foi elaborada com 11 itens do original. O tempo-limite para resolução de cada teste resumido foi ajustado em função da diminuição dos itens.

Coleta e análise de dados

Os procedimentos de coleta e análise de dados foram semelhantes ao primeiro estudo.

Resultados

O modelo estipulado pelo segundo estudo define as seguintes relações: 1) a inteligência fluida (Gf) explica diretamente a variância das respostas dos participantes nos testes RL, I, RG; 2) a competência escolar geral (CEG) explica a variância das notas escolares; 3) Gf explica diretamente a competência escolar geral e, indiretamente, todas as notas escolares; e 4) RG explica diretamente as notas em português. Além das relações apontadas, o modelo define que a variância do erro em RL é a mesma variância do erro em I, assim como há uma covariância entre as notas de matemática e português e as notas de matemática e biologia.
O modelo descrito possui satisfatório grau de ajuste aos dados (χ2= 14,20,  gl= 17, CFI= 1,00, RMSEA= 0,00). A relação entre Gf e o desempenho escolar é relativamente semelhante à encontrada no primeiro estudo. A carga fatorial entre Gf e CEG é de 0,57, com um intervalo entre 0,45 e 0,70. A carga fatorial de Gf em português é de 0,38 e varia entre 0,27 e 0,50. A carga fatorial de Gf em matemática é de 0,49 e possui um intervalo de 0,38 a 0,61. Gf apresenta carga fatorial de 0,50 em química, variando entre 0,40 e 0,62. Gf possui carga fatorial de 0,48 em biologia, variando entre 0,38 e 0,59. Gf apresenta carga fatorial de 0,51 em física e um intervalo de 0,40 a 0,62.

DISCUSSÃO

Pode-se concluir que não há discrepância entre a qualidade das notas escolares da instituição do estudo um e da instituição do estudo dois. Ambos os resultados apontam uma associação entre o raciocínio discente e o desempenho acadêmico. Em ambos os estudos, Gf explica aproximadamente um terço da competência escolar geral. Quais as implicações desse resultado?
Em primeiro lugar, a existência da relação entre o raciocínio e as notas escolares indica que a capacidade de pensar de forma abstrata e aprender coisas novas que envolvem estruturas formais de pensamento tem influência no desempenho escolar dos alunos de ambas as instituições. Raciocinar bem faz diferença, independentemente de a escola adotar ou não um ensino de estilo mais construtivista ou transmissivo.
Em segundo lugar, a existência da relação entre raciocínio e notas escolares salienta uma boa qualidade da avaliação escolar como indicador da formação do estudante, em termos dos princípios nacionais estabelecidos. Ao elaborar avaliações escolares que se relacionem com o raciocínio, a escola oferece aos alunos e seus responsáveis a possibilidade de obter um indicador efetivo no que tange aos princípios do ENEM, e ao não privar o estudante dessa informação, ela o incentiva a se orientar adequadamente e regular o seu processo de aprendizagem a partir dos critérios e princípios nacionais. Da mesma maneira, possibilita a seus responsáveis verificar quanto a escola tem contribuído em sua formação.
Um resultado relevante deste estudo envolve a verificação de que escolas com perfis diferentes apresentaram um resultado bem semelhante a respeito do poder explicativo de Gf sobre a competência escolar geral. Cerca de um terço da variância de CEG é explicado por Gf, o que, aliás, pode ser considerado uma boa fatia. De fato, não há problema e é até bom que as notas não sejam inteiramente explicadas pelo raciocínio. Além deste, a motivação, o empenho, o engajamento, a responsabilidade, entre outros fatores, podem e devem ser avaliados e valorizados pela escola. Por outro lado, há um problema quando as notas escolares não possuem nenhuma relação com o raciocínio, o qual não é apenas de ordem pedagógica ou de gestão escolar, mas de ambas as ordens.
Se as escolas apresentaram uma boa qualidade do ponto de vista da sua articulação com os princípios do ENEM, pode-se argumentar que essa condição é necessária, mas não suficiente. É necessária, no sentido de que sem essa associação não se pode articular a avaliação realizada pela escola aos princípios nacionais; por outro lado, ela não é suficiente por não informar a respeito da trajetória de desenvolvimento dos alunos. Atualmente, não é um processo fácil comparar as notas escolares das diversas séries cursadas por um aluno. Conforme já argumentado na introdução deste artigo, semelhantemente ao ENEM, as notas escolares não podem ser comparadas diretamente de ano para ano. Da mesma maneira, não se podem comparar diretamente as notas de um estudante de um ano para o outro. Em algumas situações, tirar 70 pontos em um ano é mais difícil e requer mais aprendizagem e conhecimento do que tirar 90 pontos no ano anterior ou posterior. Para esses desafios, é necessário que as escolas venham a incorporar em seu sistema de avaliação instrumentos de medida e estratégias de tratamento de dados mais sofisticados.
Do ponto de vista da gestão e política das instituições, possuir uma avaliação que se articule à inteligência é também uma condição necessária, mas não suficiente. O fato de haver uma relação entre as notas escolares e a inteligência fluida não vincula obrigatoriamente a escola a uma política de ação relacionada ao desenvolvimento da inteligência. É possível que a escola seja apenas capaz de avaliar, mas não de intervir. Além disso, conforme os argumentos de Martin (1998) e Martinson (2000), a escola pode utilizar essas informações de maneira a não promover o amadurecimento da comunidade escolar e a construção de metas palpáveis de médio e longo prazo.
Conforme argumentado, o ENEM tem causado impacto gradativo no trabalho docente (Zanchet, 2007) e um forte impacto mercadológico (Castro, 2009). Para que as mudanças tenham qualidade educacional é relevante que a avaliação articulada ao raciocínio se vincule a metas e programas de ensino voltados ao desenvolvimento da inteligência (competências) dos estudantes, sob pena de a educação brasileira avaliar relativamente bem e atuar muito mal. Vianna (2003), Fini (2005), entre outros, oferecem uma dica interessante ao ensino brasileiro, justamente mostrando a estrutura da avaliação do ENEM. No ENEM, ao invés de preocupar-se exclusivamente em relembrar conceitos e procedimentos, o aluno deve focar sua atenção e esforço em compreender o problema e formar relações, já que as informações estão disponibilizadas dentro do problema. Por sua vez, o ensino atual prototípico possui uma estrutura que prioriza a informação no lugar da construção e transformação da informação. A partir da reflexão sobre a estrutura dos itens do ENEM e sua proposta, é possível à educação brasileira repensar os programas e atividades presentes nas suas escolas, de forma a incentivar novas maneiras de ensinar. Essa condição, articulada a uma avaliação coerente, parece ser uma possibilidade importante a um país que necessita melhorar de forma intensiva o nível educacional do seu povo.

REFERÊNCIAS

Brasil. Ministério da Educação e Cultura. (1998). ENEM: documento básico. Brasília, DF: autor.
Brasil. Ministério da Educação e Cultura. (2000). ENEM: documento básico. Brasília, DF: autor.
Brasil. Ministério da Educação e Cultura. (2001). ENEM: relatório. Brasília, DF: autor.
Brasil. Ministério da Educação e Cultura. (2009). Ministro propõe novo Enem como forma de acesso a universidades federais. Recuperado em 5 de Outubro de 2009 de http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=12692& Itemid=86.
Byrne, B. M. (2001). Structural equation modeling with AMOS: basic concepts, applications, and programming. Mahwah, NJ: Lawrence Erlbaum.
Castro, C. M. (2009). Mercado é coisa de satanás? Revista Iberoamericana de Educação, 49, 103-134.
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Gomes, C. M. A. & Borges, O. N. (2009b). Qualidades psicométricas do Conjunto de Testes de Inteligência Fluida. Avaliação Psicológica, 8(1), 17-32.
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sábado, 2 de novembro de 2013

A PERFORMATIVIDADE NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO: O CASO DO ENEM

Blog Preparando-se para o ENEM e/ou vestibulares, de autoria de Álaze Gabriel.


Autoria:
Alice Casimiro Lopes; Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação - PROPED - da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Silvia Braña López; Doutoranda no Instituto Fernandes Figueira da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ).

RESUMO

Este artigo articula os efeitos da globalização com as políticas de currículo e de avaliação. Defendemos, com base em Stephen Ball, a compreensão das políticas de currículo como produção de sentidos e significados para as decisões curriculares em um ciclo contínuo de produção de políticas. Entendemos que uma das dimensões dessas políticas de currículo é a produção de uma cultura da performatividade, expressa, entre outras ações, pelo Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Pela investigação de documentos relativos ao ENEM, identificamos que o foco desse exame é a formação do indivíduo onicompetente para a eficiência social do sistema, porém, diferentemente de outras épocas, centrado na autorregulação de suas performances. Além disso, consideramos que a cultura da performatividade influencia dimensões locais da avaliação, com diferentes extensões e modos de avaliar, não necessariamente associados às mesmas finalidades dos exames centralizados.

Palavras-chave: Avaliação; ENEM; Performatividade; Política de Currículo.

INTRODUÇÃO

As mudanças no paradigma educacional produzidas nas últimas décadas têm sido, de forma geral, associadas aos efeitos da globalização. Um desses efeitos pode ser identificado na capilarização da cultura da performatividade nas políticas de currículo. A compreensão restrita do currículo como conteúdos a serem validados por sistemas de avaliação centralizados nos resultados e os consequentes rankings de escolas e de alunos são apenas algumas das evidências públicas dos discursos produzidos por essa cultura.
Na medida em que defendemos a compreensão das políticas de currículo como produção de sentidos e significados para as decisões curriculares em múltiplos contextos, de maneira a constituir um ciclo contínuo de produção de políticas (BALL, 1994), não trabalhamos com o entendimento de que essa cultura da performatividade seja um discurso produzido exclusivamente pelo Estado ou pelas agências governamentais. Uma característica importante da abordagem do ciclo de políticas é sua crítica a essa centralidade do Estado (LOPES, 2006; MAINARDES, 2007), passando pelo entendimento de que toda política expressa uma negociação de sentidos curriculares ambivalentes. Buscamos, assim, nos diferenciar de perspectivas que analisam exames centralizados nesse enfoque (ZANCHET, 2002), por entendermos que, além dessas influências, reinterpretações globais e locais se inserem nos discursos políticos de currículo. Por essas reinterpretações, o discurso se torna muito mais matizado e capaz de produzir efeitos variados.
É nessa perspectiva que apresentamos a análise de documentos relativos ao Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), investigando os princípios que apontam para a construção desse discurso favorável à cultura da performatividade. Defendemos que o foco desse exame é a formação do indivíduo onicompetente para a eficiência social do sistema de ensino e, consequentemente, do sistema social. Salientamos, porém, que, diferentemente de outras épocas, ele é centrado na autorregulação das performances do indivíduo. Defendemos, ainda, que essa autorregulação proposta produz efeitos diferentes, com finalidades distintas, em múltiplos contextos.
Ao considerarmos que o ENEM se insere no conjunto de ações que expressam e constituem uma cultura da performatividade nas políticas de currículo, não pretendemos identificá-lo como a expressão máxima ou exclusiva dessa cultura, mas como exemplo de reinterpretação local, com efeitos particulares, sintonizada com essa cultura global mais ampla. Tampouco consideramos que as conclusões aqui estabelecidas para o Enem podem ser transpostas para outros discursos associados à defesa de uma cultura da performatividade, uma vez que não se trata de uma homogeneidade de sentidos que se impõem indistintamente, independentemente das lutas políticas locais e das finalidades postas em jogo. Mas ainda assim consideramos que esta análise particular pode contribuir para outras interpretações de discursos correlatos, não apenas marcando possíveis aproximações, mas distanciamentos significativos.
Neste artigo, de forma a desenvolver os argumentos em defesa de nossas conclusões de análise, primeiramente esboçamos, com base em Friederich Jameson e Bob Lingard, o cenário constituído a partir do fenômeno da globalização. Para tal, focalizamos aspectos relacionados às mudanças no mundo do trabalho e sua relação com as políticas educacionais globais. Seguimos com a discussão proposta por Stuart Hall a respeito da centralidade adquirida pela cultura na atualidade e o uso desta como forma de regulação social, associando-a às discussões da performatividade, com Stephen Ball e Michel Foucault. Apresentamos, por fim, pela análise dos documentos, o discurso que toma por base a performatividade como forma de pensar globalmente o indivíduo onicompetente, bem como sua influência em dimensões locais das avaliações, com diferentes extensões e modos de avaliar.

O CENÁRIO DAS POLÍTICAS: O MUNDO GLOBALIZADO

A complexidade do processo de globalização reside no fato de que não introduz somente mudanças quantitativas na produção e no trabalho, mas também mudanças qualitativas. Jameson (2001) nos convida a deslocar o foco de discussão em torno da globalização da definição teórica de um conceito para a análise dos efeitos da globalização. Propõe, então, cinco níveis distintos da globalização: o tecnológico, o político, o cultural, o econômico e o social, "exatamente nessa ordem" (p. 17). O nível tecnológico refere-se a uma nova tecnologia que não se restringe somente ao campo das comunicações, mas também ao da produção e da comercialização de produtos (circulação de mercadorias e serviços). Quanto ao efeito político, o foco está na questão da nova configuração dos Estados-nação, com fronteiras não tão definidas. Em relação à cultura, Jameson considera relevante refletir sobre a tensão entre as culturas locais e os esforços de estandardização delas por uma cultura que se mundializa, partindo desses efeitos culturais os efeitos econômicos da globalização. Jameson identifica ainda a estetização das mercadorias como o fenômeno cultural que atravessa o atual processo de produção, capazes de tornar cada vez mais fluidos os limites entre cultura e economia. Concordamos com o autor que tal imbricação entre o cultural e o econômico traz profundas consequências para a esfera social, já que reconfigura toda uma agenda social que engendra as formas de ação política e torna também imbricadas a cultura e a política.
As consequências desse processo para a educação, por sua vez, são mais profundas do que a simples introdução de novas tecnologias e o fortalecimento de determinadas disciplinas em detrimento de outras, tais como: a inserção de novas linguagens da informática no currículo, o fortalecimento do ensino de ciências e matemática, a valorização da sociologia como suporte ao entendimento das relações transculturais, o domínio da linguagem, tanto oral quanto escrita, revelando a importância da comunicação em seus diversos sentidos. Expressando mudanças nas formas de trabalho no modo de produção capitalista, a centralidade da cultura e o reordenamento geopolítico-econômico em curso, surgem novas exigências em relação às competências e habilidades entendidas como necessárias ao trabalhador capaz de se inserir no mundo em mudança cada vez mais acelerada.
O projeto de formação desse trabalhador, não mais visto como qualificado para uma função, mas como mobilizador de competências - algumas delas muito especializadas, vinculadas a determinadas funções transitórias -, facilita a articulação entre demandas construtivistas e demandas instrumentais. As demandas construtivistas, voltadas para competências complexas, centradas no processo de aprendizagem do aluno e com foco na construção do conhecimento, tornam-se agora compatíveis com as demandas instrumentais, voltadas para competências centradas no desempenho e para o controle do processo de ensino-aprendizagem, visando à eficiência da instrução (LOPES, 2008). Tal articulação também produz novas exigências para o professor capaz de garantir a formação de tal trabalhador. Como discute Dias (2006), a responsabilização individual do professor pelo desempenho do aluno e da escola, o foco na competitividade entre professores e a constituição de um perfil profissional ancorado nessas performances marcam a constituição da cultura da performatividade na formação de professores.
Em relação à atuação dos Estados-nação nesse cenário mundial, Ball (2004a, p. 1106) discute o surgimento de um acordo político do pós-Estado da Providência, no qual observa "mudanças nos papéis do Estado, do capital, das instituições do setor público e dos cidadãos e nas suas relações entre si". Esse autor inicialmente aponta para a modificação da qualidade das atividades do setor público. O Estado passa do estatuto de provedor para o de regulador, atuando como auditor na avaliação dos resultados alcançados pelos mercados internos. Uma segunda mudança por ele sinalizada refere-se à obtenção de lucro por meio de atividades de natureza social, quando as empresas rompem com as regulações do não-mercado e nele inserem seus princípios. A terceira mudança enfatizada por Ball diz respeito às instituições do setor público que são levadas a se inserirem em uma nova cultura de performances (desempenhos) competitivas, a partir da descentralização e dos incentivos a um novo perfil institucional. Por último, há a mudança que diz respeito aos cidadãos, os quais passam da posição de dependência em relação ao Estado do Bem-Estar Social para o papel de consumidores ativos. Associado a essas mudanças, não podemos deixar de considerar o fenômeno das trocas aceleradas de informação e de bens simbólicos, com grande intensificação dos intercâmbios culturais. A aceleração das desterritorializações e reterritorializações dos processos simbólicos torna os signos de identificação cultural, cada vez mais, não-fixos. Ainda segundo o autor (BALL, 1997), passamos a conviver com uma associação entre as velhas formas de gerencialismo, centradas no controle direto, mediante a ameaça de punições, e o novo gerencialismo, em que prevalecem processos de autorregulação: as pessoas são motivadas a assumir performances de qualidade e excelência, supostamente sem os mecanismos diretos de repressão anteriormente utilizados.
Esses intercâmbios culturais trazem outros desafios para o campo da pesquisa educacional, uma vez que fica mais evidente que a produção de políticas não é emanada exclusivamente dos centros globais de poder político, tais como organismos de representação internacional das nações, órgãos de financiamento de programas de desenvolvimento na esfera mundial, Estados-nação hegemônicos que "exportam" e disseminam diagnósticos e "soluções" políticas educacionais. Há que se considerar a tensão global-local como capaz de produzir novas configurações em um vigoroso processo de negociação e de recontextualização, ao que Appadurai (apud LINGARD, 2004) denomina "globalização vernacular".
Se, por um lado, podemos identificar a convergência de políticas no contexto de influência, tais como a formação por competências, a formação para o atendimento de demandas mercadológicas, a estruturação de processos de avaliação continuados, por outro, tal convergência não garante homogeneidade quando situada nos contextos de produção e de prática (BALL,1998; 2001). Tanto pela mediação dos Estados-nação e dos sujeitos e instituições atuantes em sua esfera, que articulam a produção de orientações oficiais, quanto pelas releituras no espaço escolar, na conversão das práticas globais em locais, os textos circulantes são reinterpretados, resultando na produção de discursos híbridos. Tal hibridismo é decorrente de um processo de recontextualização no qual discursos, ou mesmo fragmentos deles, são associados a discursos locais. Instaura-se uma negociação assimétrica entre esses discursos, incluindo ideias, documentos, experiências, práticas e pesquisas, constituídos localmente, que resultam em uma recriação híbrida no contexto da prática e no contexto de produção das orientações oficiais.
Nesse trânsito de sentidos e significados, constantemente recontextualizados nos múltiplos contextos, é que se dá a disseminação de uma política educacional global identificada como circulante nos países ocidentais pós-industriais. Essa política também é aqui considerada como formada por princípios locais que se globalizaram. Segundo Carter e O'Neil (apud BALL, 1998, p. 126), são cinco elementos principais que circulam com tais políticas: a) estreitamento da relação entre escolarização, produtividade e comercialização; b) busca da melhoria dos resultados escolares em termos de habilidades e competências exigidas pelo mercado de trabalho; c) estabelecimento de controle sobre os conteúdos curriculares e sua avaliação no âmbito das escolas, com foco no desempenho de professores e estudantes; d) busca da minimização dos custos educacionais para o governo; e, finalmente, e) incremento da participação e do envolvimento da comunidade, sobretudo por meio da participação dos responsáveis pelos estudantes e das exigências mercadológicas nos processos decisórios da instituição escolar.
Tais elementos engendram políticas de currículo que tentam instaurar processos de regulação por meio do que vem sendo denominado cultura da performatividade, a qual passamos a analisar.

A CULTURA DA PERFORMATIVIDADE COMO PROJETO DE REGULAÇÃO DA EDUCAÇÃO

Tomando de empréstimo o conceito de cultura de Hall (1997) como conjunto de sistemas ou códigos de significados que dão sentido às nossas ações, podemos identificar as práticas sociais como práticas de significação e, como tais, não só definidoras dos significados dos objetos, mas também de sistemas de codificação, ordenação e regulação de modos de agir em sociedade. Nessa perspectiva, a cultura é definidora também das identidades sociais e da constituição dos sujeitos, na medida em que tais identidades e subjetividades derivam de processos discursivos, os quais possibilitam nos situarmos e nos movimentarmos na interioridade das definições fornecidas pelos discursos culturais. Com isso, ainda segundo Hall (1997, p. 32), "todas as práticas sociais, na medida em que sejam relevantes para o significado ou requeiram significado para funcionarem, têm uma dimensão 'cultural'".
A essa perspectiva associamos a discussão de Foucault (1989) quando afirma que cada sociedade possui seu regime de verdade, a partir do qual produz efeitos coercitivos e regulamentados de poder. Cada sociedade estabelece uma "economia política" de verdade/poder pela qual certos tipos de discurso são acolhidos como verdadeiros e outros, não; na qual certos mecanismos e instâncias permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, sancionando uns e outros; pela qual se constituem certas técnicas e procedimentos que são valorizados; na qual se define o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro e válido. O poder e seu regime de verdade são disciplinares, atravessando toda a trama social. O poder "não destrói o indivíduo; ao contrário, ele o fabrica. O indivíduo não é o outro do poder, realidade exterior, que é por ele anulado; é um de seus mais importantes efeitos" (MACHADO, 1986, p. XX).
Pela sintonia com esses enfoques, acreditamos na relevância das análises em torno dos sentidos e significados circulantes nas políticas de currículo. A partir de sua investigação, encontramos determinados traços globais e locais nas releituras das definições oficiais, bem como nos efeitos dessas políticas na sociedade por intermédio da escolha de certas finalidades em detrimento de outras. Tais políticas deslizam ao longo de todo seu processo de constituição, por intermédio de ordenações discursivas e mecanismos de regulação diversos.
Segundo Hall (1997, p. 36), "o movimento em direção às 'forças libertadoras do livre mercado' e a estratégia de 'privatização' tornaram-se a força motora de estratégias econômicas e culturais tanto nacionais quanto internacionais". As políticas reformistas adotadas nas últimas décadas por diversos governos, fomentadas por organizações supranacionais financiadoras de projetos, tais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, por meio de seus programas de ajustes estruturais, revelam a adoção de políticas marcadamente privatizantes, de redução do financiamento estatal e a adoção da cultura do livre mercado como forma de regulação. Mas em torno dessas ações que envolvem interesses materiais bem-delineados, há a circulação de discursos globais e locais que buscam construir a legitimação de tais orientações. Comunidades epistêmicas globais e locais (ANTONIADES, 2003) são formadas difundindo e reinterpretando tais orientações.
Um exemplo desses discursos pode ser identificado no Relatório Delors (DELORS, 2001), documento produzido pela Unesco e que se propõe "afirmar a sua fé no papel essencial da educação no desenvolvimento contínuo, tanto das pessoas como das sociedades"(p. 11).Tal documento compreende a educação como uma via capaz de conduzir os países ao desenvolvimento humano, social, nacional e, por fim, global. Um dos pilares da reforma educacional, proposta nesse relatório, é a valorização de um necessário e contínuo processo de aprender a aprender, agregando ao conceito de educação um caráter contínuo e permanente - a educação ao longo de toda a vida, espelhando traços de uma regularidade global nos sentidos atribuídos às finalidades da educação. Tais sentidos capilarizam-se e podem ser identificados, recontextualizados, nos projetos de políticas curriculares locais.
Em torno da ideia da eficiência e da maximização de resultados que a radicalidade do processo contínuo do aprender resulta, podemos assinalar a adoção de soluções de mercado visando a favorecer a emersão e o fortalecimento da cultura centrada na performatividade. O extravasamento de determinado ideário do campo da economia para outras esferas da vida social resulta, em especial no que se refere à educação, na mercantilização e na objetivação do processo de ensinar-aprender e favorece sua associação à avaliação como meio de aferir o sucesso da aprendizagem. Essa tríade aprender-ensinar-avaliar apresenta cada vez mais uma relação de interdependência. Segundo Boyle (apud BALL, 2004a, p. 1116), "o ensino e a aprendizagem estão sendo reduzidos a processos de produção e de fornecimento, que devem cumprir os objetivos de mercado de transferência eficiente e de controle de qualidade".
A educação passa a ser pensada como forma de produção e serviço, sob a regência da lógica do mercado e pelo afastamento gradual do Estado em seu financiamento, mas não em sua regulação. Assim, em nome desse processo de objetivação, as especificidades dos processos educacionais que, até então, pressupunham uma necessária "interação humana", tendem a ser prescindidas. Busca-se reduzir e subordinar a prática do ensino-aprendizagem à exterioridade, a partir da adoção de regras e da utilização de um suporte material (livros, mídia institucional, parâmetros) que se quer prescritivo, estandardizado e, por isso, mesmo passível de ser classificado, mensurado e comparado, sempre com a finalidade de se atingir metas. A mitificação política acerca da eficiência do setor privado e suas inovadoras formas de gestão propiciam a convergência do setor público em direção e de acordo com os pressupostos mercadológicas privados, tanto em seus aspectos materiais quanto nos simbólicos. Com isso, constitui-se a preocupação mais recentemente observável dentro do setor público com a gestão "das aparências, marketing e promoção" (BALL, 2004a, p. 1117).
Um dos exemplos dessa política de regulação é o surgimento de uma cultura da performatividade. Ball (2003, p. 216) define a performatividade como "uma tecnologia, uma cultura e um modo de regulação que emprega julgamentos, comparações e termina se revelando como meio de controle, de desgaste e de mudança". Em referência ao trabalho de Lyotard, Ball (2004b, p. 142) observa dois fortes componentes que têm constituído o novo discurso de poder nas sociedades pós-industriais, quais sejam, a responsabilização (accountability) e a competição, a partir dos quais todo um processo de legitimação de novas identidades sociais passa a se pautar. Nesse sentido, a educação adquire ainda maior destaque, já que, por intermédio dela, busca-se, de modo mais efetivo, a transmissão da cultura da performatividade para a constituição de sujeitos mais produtivos, eficientes, polivalentes, pró-ativos, assertivos, disponíveis à compreensão de outras culturas. Instaura-se a incessante busca pelo que denominamos sujeito onicompetente, aquele que está em perene prontidão para a demonstração de seus conhecimentos e desempenhos, em constante e permanente processo de avaliação, no qual "o funcionamento do poder é garantido pelo controle constante da performatividade"(LOPES, 2004, p. 63). Para isso, as organizações lançam mão de estratégias de gestão e governança em nome de um plano de cumprimento de metas, a partir da maximização do desempenho de seus quadros e do enxugamento de custos operacionais, mesmo que em rota de colisão com questões de ordem ética, profissional, humana. Trata-se de um esforço de naturalização que a cultura da performatividade tem possibilitado, no sentido de constituir dada normatividade, o disciplinamento por intermédio de novos arranjos discursivos e de regulação social.
Há que se destacar que, em Lyotard (1986), a cultura da performatividade não é assumida como necessariamante negativa, mas como um modo diverso de legitimação do conhecimento na pós-modernidade. Para Lyotard, a ciência pós-moderna é aquela que passa a se validar pela performance, um processo de legitimação no qual o poder substitui os critérios de justiça, beleza ou verdade. Mas tal substituição não é uma mudança por julgamento de valor, mas em função do fim das metanarrativas de justificativa da ciência, sejam elas a formação do espírito ou a ideia de verdade legitimada pela prova empírica, cara ao realismo. Nesse caso, a legitimação pelo desempenho advém dos resultados que esse desempenho pode trazer para a solução de problemas, a melhoria da qualidade de vida e/ou a capacidade de produzir mais recursos econômicos.
Ainda assim, como salienta esse autor, a lógica do desempenho pode se tornar apenas uma forma de consolidação do sistema, de modo determinista, pois está prevista nessa lógica a concepção de que, a partir de determinados insumos, temos, por consequência, determinados resultados. Admitir que essa lógica existe e que com ela a ciência trabalha não deve significar a desconsideração de outras lógicas. É possível, como faz Lyotard, defender que a ciência também trabalha com a paralogia, forma que visa ao pluralismo cada vez maior no interior do sistema. Nesse processo, em vez de apenas se trabalhar para que melhores desempenhos sejam obtidos, seguindo as regras do jogo da ciência, busca-se romper com essas regras. Isso é possível ser feito com a identificação de paradoxos e a criação de novas regras.
A cultura da performatividade, imbuída do projeto de manutenção do sistema, entretanto, ainda que não seja a única, vem sendo disseminada privilegiadamente pela educação. Um dos exemplos que no Brasil expressa essa disseminação é o ENEM, que passamos a analisar.

AVALIAÇÃO E PERFORMATIVIDADE NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO: O CASO DO ENEM

Ball (2001) analisa como essa nova economia moral, mais do que um sistema de vigilância, constrói um espetáculo que define um fluxo de performatividades contínuas e importantes. Os desempenhos dos sujeitos individuais e/ou das organizações servem como medida da produtividade e exposição pública da "qualidade". Conferir visibilidade ao conhecimento e, portanto, garantir sua medida, permanece sendo a lógica que configura os processos de avaliação, tal como em processos instrumentais instituídos em outras épocas no meio educacional (DÍAZ BARRIGA, 1992).
Tal foco na medida de desempenho pode ser percebido na avaliação das competências e habilidades. O ENEM assume, desde sua criação, a intenção de:
(...) avaliar o desempenho do aluno ao término da escolaridade básica, para aferir o desenvolvimento de competências fundamentais ao exercício pleno da cidadania (Documento Básico, p. 1). Para tal, assume a concepção de competência como modalidades estruturais da inteligência, ou melhor, ações e operações que utilizamos para estabelecer relações com e entre objetos, situações, fenômenos e pessoas que desejamos conhecer. As habilidades decorrem das competências adquiridas e referem-se ao plano imediato do "saber fazer". Por meio das ações e operações, as habilidades aperfeiçoam-se e articulam-se, possibilitando nova reorganização das competências (aferir o desenvolvimento de competências fundamentais ao exercício pleno da cidadania) (Documento Básico, p. 5, grifos nossos).
Como já foi discutido em outros trabalhos (LOPES, 2001; MACEDO, 2002), as competências se inserem em uma perspectiva curricular instrumental que tende a limitar o conhecimento ao saber-fazer, ao desempenho. Mesmo quando associadas às estruturas da inteligência, como no Enem, é por meio das habilidades e das performances que elas são expressas e medidas. Com isso, sua dimensão cognitiva é esvaziada de sentido, reduzindo-se a uma função de valor de troca no mercado social: afirma-se a positividade do conhecimento caso ele se expresse em um saber-fazer passível de ser trocado por vantagens sociais. Com isso, nosso questionamento não se dirige à possibilidade de que, pelo currículo, haja formação de competências e habilidades ou de que o conhecimento também seja a base de performances vinculadas a dimensões pragmáticas. A problemática se insere na redução do currículo e do conhecimento a essas dimensões. Tal processo pode se desenvolver quando a organização curricular é instituída por meio de competências e habilidades.
Uma das reinterpretações hibridizadas das competências com orientações mais críticas é a perspectiva de conhecimento situado, contextualizado, buscando sintonia com dimensões cotidianas. No caráter híbrido de tal contextualização, no entanto, também prevalecem concepções instrumentais (LOPES, 2002a), pois tende a ser valorizado o conhecimento situado em um contexto de aplicação, "sendo em parte um produto da atividade, do contexto e da cultura nas quais é desenvolvido e usado" (Informativo do Enem - Brasil, 2005a). Na medida em que as competências vão além das dimensões cognitivas, por vezes tornando nebulosas suas relações com o conhecimento, elas são igualmente pensadas no seu vínculo com os valores e as disposições do sujeito diante de situações-problema.
Busca-se, dessa maneira, verificar como o conhecimento assim construído pode ser efetivado pelo participante por meio da demonstração de sua autonomia de julgamento e de ação, de atitudes, valores e procedimentos diante de situações-problema que se aproximem o máximo possível das condições reais de convívio social e de trabalho individual e coletivo. (Documento Básico, p. 5, grifos nossos)
É dessa forma que a concepção de conhecimento mostra-se restrita ao utilizável, ao que é situado em determinados contextos. Como discute Lyotard (1986), "o conhecimento não é mais legitimado porque é verdadeiro, porque atende princípios como ser bom, justo ou belo, mas porque é bem-sucedido, tem menor custo que outra opção". O conhecimento passa a ser encarado socialmente como expressão do resultado dos exames, uma identificação não apenas construída pelos elaboradores desses exames, mas pelos que analisam seus resultados e seus efeitos sociais. É por meio da performatividade e da responsabilidade (accountability) que serviços sociais como a educação são padronizados, calculados, qualificados e comparados, em uma dinâmica na qual os conhecimentos legitimados dos estudantes passam a ser vistos como idênticos aos resultados dos testes que o representam.
A despeito de o presidente do Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais (Inep), instituto formulador e implementador do ENEM, afirmar que a função do exame é diagnóstica para as políticas públicas e que não tem por objetivo fazer ranking de qualquer tipo de avaliação - até por saber que não só a escola, mas também a trajetória do aluno e o perfil sociocultural dele são muito importantes para os resultados obtidos (FERNANDES, 2007) -, a divulgação dos resultados de todas as escolas, por município e por ordem alfabética, permite a constituição de rankings divulgados pela mídia. O interesse por tais rankings gera as apressadas conclusões extraídas desses resultados, vinculando de forma imediata e simplificadora as notas dos alunos com a suposta qualidade das escolas. Mas, sobretudo, expressa o quanto a cultura da performatividade encontra sintonia com múltiplos interesses sociais, além da esfera do Estado. Tanto que, a despeito do interesse pelo tema, a discussão sobre as provas do ENEM só encontra espaço na mídia visando a ações preparatórias para os exames. É como se em uma avaliação não coubesse questionar o instrumento que gera o resultado obtido.
É importante ressaltar que a concepção de conhecimento expressa do Documento Básico do ENEM visa à integração de saberes, mostrando-se sintonizada com dimensões críticas ao currículo disciplinar e, dessa forma, construindo seu processo de legitimação junto ao meio educacional mais amplo. Como afirmado na p. 4:
(...) a concepção de conhecimento subjacente a essa matriz pressupõe colaboração, complementaridade e integração entre os conteúdos das diversas áreas do conhecimento presentes nas propostas curriculares das escolas brasileiras de ensino fundamental e médio e considera que conhecer é construir e reconstruir significados continuamente.
Na medida em que a competência se expressa em um saber-fazer, a integração é desenvolvida pela articulação dos diferentes saberes necessários a esse saber-fazer, assumindo, com isso, uma perspectiva instrumental, distante de outras perspectivas de integração que têm por referência os saberes dos alunos ou os saberes cotidianos (LOPES, 2008). Ou ainda, assumindo que os saberes cotidianos a serem legitimados são aqueles que permitem a inserção do indivíduo na nova lógica do mundo produtivo.
Assim, o foco nas competências e habilidades é apresentado como uma organização curricular e uma forma de avaliação obrigatórias, na medida em que são entendidas como capazes de atender às mudanças no mundo globalizado.
Esta rapidez com que as mudanças sociais se processam e alteram nossa vida cotidiana impõe um padrão mais elevado para a escolaridade básica, e o projeto pedagógico da escola deve objetivar o desenvolvimento de competências com as quais os alunos possam assimilar informações e utilizá-las em contextos adequados, interpretando códigos e linguagens e servindo-se dos conhecimentos adquiridos para a tomada de decisões autônomas e socialmente relevantes. (Documento Básico, p. 1, grifos nossos).
A suposta inexorabilidade do novo cenário naturaliza as novas formas de regulação, tornando-as mais do que obrigatórias - desejáveis -, pois buscam viabilizar a possibilidade do sucesso.
As marcas que situam o ENEM nas políticas que configuram a performatividade também podem ser identificadas nos objetivos explícitos do exame (Documento Básico, p. 2). Não se trata apenas de uma avaliação do sistema de educação básica, como prevê um dos objetivos do documento, mas é esperado que o exame sirva como referência à autoavaliação do indivíduo, "com vistas às suas escolhas futuras, tanto em relação ao mercado de trabalho quanto em relação à continuidade de estudos", bem como possibilite uma alternativa ou um complemento aos processos de seleção nos diferentes setores do mercado de trabalho e nos exames de acesso aos cursos profissionalizantes pós-médios e ao ensino superior. Tal perspectiva é corroborada pelas cartilhas do Exame (BRASIL, 2006ª; 2008) e por pesquisas desenvolvidas com candidatos do Enem (PINTO; LETICHEVSKY; GOMES, 2002)
Nesse sentido, diferencia-se de processos instrumentais de avaliação instituídos em épocas passadas, nos quais se visava à eficiência do sistema de ensino, tendo por base a funcionalidade do sistema social em uma base coletiva de controle. Em tempos de valorização da performatividade, o foco é o indivíduo e sua possibilidade de se autorregular por meio do autoconhecimento. Com isso, é almejada a identificação entre avaliação externa e autoavaliação, constitutivos não apenas de uma preparação para o exame, mas para a "vida". Os slogans "O ENEM prepara você para as provas da vida" (BRASIL, 2005b) e "Venha participar desta revolução" (BRASIL, 2008) buscam estabelecer essa relação com a mudança e o projeto de vida, para além de um simples processo de examinar saberes.
Com a dissolução aparente da vigilância externa - não há a obrigação de ser aprovado-, configura-se a internalização da avaliação e do exame de seu autoconhecimento. Como afirmado no Informativo do ENEM (BRASIL, 2005a, p. 18), referindo-se aos professores que prestam esse exame, "o Enem faz uma inversão necessária na pirâmide das políticas educacionais. Ao invés de agir no sistema, para que tenha resultados no indivíduo, trabalha no indivíduo e gera conseqüências no sistema". É a autorregulação das performances do indivíduo que são entendidas como base de manutenção do funcionamento do sistema.
Ainda que localizado ao final do ensino médio, o Enem tende a vincular o conhecimento, expresso nas competências e habilidades, ao que é entendido como necessário ao indivíduo em toda sua vida. É simultaneamente afirmado que o exame é voluntário, um direito do aluno, mas também uma necessidade da vida contemporânea. No slogan final do Informativo do ENEM (BRASIL, 2005a, p. 32) - "A vida é cheia de opções. Esteja pronto para escolher as melhores" -, a vinculação com a qualidade do conhecimento necessário ao mundo e ao trabalho que se transformam tão rapidamente, a instauração da incerteza quanto ao futuro e a instabilidade da avaliação constante configuram o quadro que permite à cultura da performatividade se inserir nas políticas de currículo.
Cabe destacar, ainda, que, enquanto os exames vestibulares são vistos como norteadores de conteúdos utilizados para determinar a entrada nos níveis superiores e, dessa forma, controlar os currículos do nível médio, o ENEM colocou-se, inicialmente, com uma tarefa mais profunda: estabelecer as performances exigidas para a vida e para o trabalho, dimensões que se associam e se reforçam na forma como tendem a ser entendidas na cultura global. Com isso, a perspectiva de controle centralizado do currículo do nível médio também se acentua (MILDNER; SILVA, 2002a), porém não mais centralizado nos conteúdos, mas nas competências e habilidades. A relativa ausência da validade de conteúdo em provas do Enem já foi evidenciada por trabalhos que analisam as questões de Química e de Língua Portuguesa (MILDNER; SILVA, 2002a; 2002b), e também pode ser constatada pela compreensão geral que os alunos de nível médio têm em relação às provas.
Na medida em que o exame se tornou também a possibilidade de acesso ao Programa Universidade para Todos (ProUni), a esses objetivos foi agregado, mais acentuadamente2, o de acesso ao nível superior. Nesse caso, é possível perceber, nos documentos de divulgação do exame, a superposição desse discurso regulador das competências e habilidades com o discurso que busca ampliar as possibilidades de acesso ao ensino superior. A despeito das críticas ao ProUni, em virtude do direcionamento de verbas para o sistema privado de ensino, a ele se associa uma dimensão democrática de tentativa de diminuição da desigualdade de acesso no ensino superior. Nesse caso, os efeitos de primeira ordem (BALL, 1994), vinculados à garantia da instrução, mais marcantes nas primeiras versões do Enem, são articulados aos efeitos de segunda ordem descritos pelo mesmo autor, que tentam obter resultados de ampliação da justiça social.
Dessa forma, o ENEM, como um sistema avaliativo que condensa os princípios da Reforma Educacional do Ensino Médio brasileiro, se constitui como um dispositivo que entrelaça e interpenetra o processo de ensino-aprendizagem em múltiplos níveis, já que, a partir dele, são engendrados tanto resultados globais (relativos às redes de ensino), quanto locais (referentes às unidades locais) e individuais (relativos ao aluno). Igualmente, o ENEM participa do fortalecimento e da circulação dos princípios da reforma, pois, em seu entrelaçamento e em seu processo de negociação com os múltiplos contextos com os quais se relaciona, produz efeitos mais ou menos convergentes de adesão a seus princípios. Pelos efeitos que produz nas políticas de currículo, os discursos associados a esse exame constituem um contexto de influência para outras ações curriculares e também para outros sistemas de avaliação.
Localmente, o vestibular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) é um exemplo dessa influência (LÓPEZ, 2007). O processo de construção do novo modelo de Vestibular da UERJ, em 2000, partiu da justificativa de adequação de seu processo avaliativo às novas prerrogativas legais em curso à época, quais sejam, a nova LDB, as diretrizes e aos parâmetros curriculares para o ensino médio. Cumpre destacar, no entanto, que tal modelo emerge de um processo anterior3, mais amplo e complexo, de reestruturação do projeto universitário da instituição, que visava a criar condições para a produção de conhecimento científico e incremento à pesquisa na universidade, rompendo com sua tradição vocacional de formação profissional, até então, instituída desde sua fundação. Vinculou-se, assim, a um projeto que contribuiu não só para a modernização dessa instituição de nível superior como para ampliar as possibilidades de cumprir com finalidades sociais de pesquisa esperadas de uma universidade.
Os argumentos jurídico-normativos utilizados contribuíram para o esmaecimento de resistências internas que poderiam obstaculizar a institucionalização dessa nova agenda para a universidade. Assim, princípios observados na Reforma Educacional brasileira, tais como a integração curricular, a contextualização e a avaliação baseada na aferição de competências e habilidades, foram apropriados no escopo desse novo modelo de concurso vestibular. Na análise de López (2007), no entanto, com base na perspectiva de Stephen Ball, os sentidos das políticas, quando em seu processo de negociação entre os múltiplos contextos pelos quais transita, expressam os acordos entre as lutas pelo poder de significação das políticas educacionais. Isso resultou especificamente, no caso da UERJ, uma hibridização de sentidos que amalgama princípios da reforma e da tradição disciplinar da universidade, produzindo políticas curriculares para o ensino médio diferenciadas daquelas intencionadas pela Reforma Educacional. Seus efeitos, portanto, não podem ser traduzidos como mera extensão dos efeitos do Enem, ainda que neles se baseassem.

CONCLUSÕES

Para concluir, é importante salientar o quanto a constituição da cultura da performatividade de forma global não é um processo que verticalmente se impõe a nós, como uma dimensão externa aos sujeitos, mas sim uma rede de poderes nas quais nos constituímos. A existência dessa cultura não é por nós entendida como uma produção exclusiva do contexto de influência e/ou do contexto de produção de textos delineados por Ball, mas como dinâmicas que se articulam em múltiplos contextos e que também têm sua produção engendrada no contexto da prática. Assim, contam com a participação de múltiplos sujeitos capazes de construir comunidades epistêmicas globais e locais em defesa das avaliações centralizadas nos resultados e de sua associação com a qualidade da educação. Não é incomum encontrarmos escolas que, em torno do Enem, vêm construindo práticas que estimulam seus alunos aos estudos e buscam sua valorização social e o desenvolvimento de sua autoestima.
Também é possível destacar, como procuramos argumentar ao longo do texto, como a perspectiva instrumental predominante no exame encontra-se hibridizada a outras tendências, que tanto podem assumir um viés mais democrático - quando sinalizam a necessidade de diminuir a desigualdade de acesso à universidade - quanto podem acentuar os efeitos performáticos - constituindo rankings supostamente científicos de escolas.
Nessa perspectiva, existem dimensões locais das avaliações, diferentes extensões de seus efeitos a serem analisados, inclusive considerando as diferentes leituras em contextos institucionais e disciplinares diversos. Defendemos, portanto, ser necessário associar a essa análise a investigação dos sentidos e significados produzidos nas políticas pelos exames já realizados.
Mas já é possível perceber como o foco na formação do indivíduo onicompetente para a eficiência social do sistema de ensino e do sistema social, centrado na autorregulação de suas performances, tenta se tornar uma meta a ser alcançada, na construção dessa cultura da performatividade. Dessa forma, mais do que a eficiência social das perspectivas instrumentais de outras épocas, com algum sentido voltado ao coletivo, busca-se a eficiência do indivíduo autorregulado, supostamente capaz de vir a se traduzir em uma eficiência do sistema.
Tal meta não se estabelece em todos os níveis da mesma forma, tampouco é possível afirmar que ela se estabeleça de uma vez por todas. Mas a existência de esforços nessa direção já é suficiente, a nosso ver, para que busquemos estabelecer e reforçar ações no sentido de acentuar políticas sintonizadas com o caráter diagnóstico das avaliações e com a possibilidade de questionar o foco no desempenho quando ele só se mostra como produtor de efeitos não-democráticos. Em outras palavras, torna-se fundamental não restringir a avaliação e o currículo ao foco no desempenho. Diferentemente, mostra-se importante tornar o foco no desempenho uma forma de evidência pública vinculada à luta pela diminuição das desigualdades sociais.
Por fim, cabe destacar que tais questões nos apontam não apenas para problematizarmos o projeto e os efeitos decorrentes de uma cultura da performatividade no currículo, mas também para questionarmos esses efeitos, atuarmos no sentido de reinterpretá-los e redirecioná-los, na medida em que "em si mesmas as regras são vazias, violentas, não finalizadas; elas são feitas para servir a isto ou àquilo; elas podem ser burladas ao sabor da vontade de uns ou de outros"(FOUCAULT, 1989, p. 25).

REFERÊNCIAS

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DOCUMENTOS ANALISADOS

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NOTAS

1 Uma versão reduzida deste texto foi apresentada no XIII Endipe, Recife, 2006, com o título "A performatividade nas políticas de currículo: o caso do ENEM". Este trabalho faz parte do grupo de pesquisa Currículo: sujeitos, conhecimento e cultura (www.curriculo-uerj.pro.br) e contou com financiamento do CNPq, da Faperj e da UERJ.
2 Antes do ProUni, o uso do ENEM como forma de seleção aos cursos superiores era mais restrito, dependendo da decisão de cada universidade.
3 A partir dos anos 1990, a UERJ desenvolveu toda uma política de acelerar e aprofundar seu processo de produção científica. Um dos marcos desse processo é o Programa Prociência, que visa a conceder bolsa de dedicação exclusiva com base em uma avaliação por pares da produção e da pesquisa dos professores.